A Concretização da Política Nuclear Brasileira

A Política Nuclear começou a ser implantada antes de sua publicação

Carlos Feu Alvim e Olga Mafra
carlos.feu@ecen.com e olga@ecen.com

O Decreto Nº 9600 de 05/12/2018 sobre a Política Nuclear reúne princípios profundamente amadurecidos dentro do setor correspondente.  Em nosso recente artigo na E&E 101, comentamos alguns dos aspectos do texto que institucionaliza essa Política.

Faltou comentar o que já foi realizado para implantar essa Política, até antes mesmo que ela fosse consubstanciada no mencionado Decreto. É o que estamos abordando aqui.

Foi reativado o Comitê de Desenvolvimento do Programa Nuclear Brasileiro – CDPNB[1] que centraliza na Presidência da República as decisões fundamentais da Política Nuclear. O deslocamento de sua secretaria executiva para o Gabinete de Segurança Institucional – GSI[2] da Presidência da República marcou o reconhecimento do caráter estratégico para o Brasil da energia nuclear e dos conhecimentos tecnológicos a ela associados. A decisão brasileira é análoga à posição de todos os grandes países do mundo onde existe, invariavelmente, uma centralização das decisões sobre a política nuclear no posto máximo do Poder Executivo.

O processo de elaboração da Política Nuclear permitiu criar junto ao GSI vários Grupos Técnicos com foco em temas relevantes que antecipavam os passos seguintes para sua concretização. Esses GTs contaram com a participação e coordenação direta dos setores envolvidos. Deles resultaram, por exemplo, a prioridade dada ao projeto do Reator Multipropósito Brasileiro – RMB, liderado pela CNEN através do IPEN, e a viabilização de recursos da saúde para sua concretização. Também é um ponto positivo a participação da indústria argentina no projeto, como também foi o fornecimento de urânio enriquecido brasileiro para a Argentina. Ademais, ações de efetiva cooperação como estas reafirmam a política de uso somente pacífico da energia nuclear em nosso continente. Além disso, o projeto do RMB reúne, em sua execução, as capacidades técnicas brasileiras tanto na parte civil como na militar e isto é também fator relevante dentro da Política[3].

O RMB, além da produzir radioisótopos para aplicações na saúde, agricultura e indústria e fornecer feixes de nêutrons para a investigação e aplicações, permitirá a irradiação e teste de combustíveis nucleares e materiais usados nos reatores visando avaliar a integridade estrutural destes quando submetidos a altas doses de radiação, o que não existe no país. Juntamente com os projetos da Marinha já existentes, a futura presença do RMB abre a perspectiva de reunir, no campus de ARAMAR, unidades de pesquisa e formação de pessoal que venham a reforçar o entrosamento com os institutos de pesquisa da CNEN e os cursos universitários nas áreas nuclear e correlatas.

Sem muito alarde, foi desfeita uma falha na organização nuclear vigente que era a esdrúxula subordinação ao órgão regulador CNEN das empresas INB e NUCLEP. Principalmente no caso da INB, que tem a missão de se ocupar de todas as etapas da mineração até o combustível nuclear, o fato do Presidente da CNEN ser o presidente do Conselho da Empresa gerava um evidente conflito de interesses. Este conflito, que poderia significar uma conivência do órgão regulador, parece ter favorecido, ao contrário, um aparente “excesso de zelo” que acabou inviabilizando o volumoso investimento já realizado na mineração subterrânea em Lagoa Real/Caitité. A dificuldade de licenciamento motivou seu abandono. Isto paralisou a produção de nossa única mina de urânio por mais de três anos, obrigando o País, com cerca de 5% da reserva mundial, a importar a matéria prima para suas centrais[4]. Ao final de 2018 a INB anunciou os testes operacionais para extração de urânio em anomalia próxima à atual usina, com ampliação da capacidade de beneficiamento.

O Governo que se encerrou (Temer) desvinculou a CNEN da presidência dos conselhos das empresas INB e NUCLEP. A nova estrutura, anunciada neste início de ano e de governo (Bolsonaro), resolveu o problema de forma definitiva realocando essas duas indústrias no Ministério de Minas e Energia. Isto também soluciona o desequilíbrio administrativo de se ter em um ministério de parcos recursos (MCTIC) duas indústrias de porte que absorviam boa parte de sua dotação orçamentária. No caso da INB, existe ainda uma potencial sinergia com a Eletronuclear que a realocação ministerial pode facilitar.

Em todas estas iniciativas, cabe completar a referência que fizemos em artigo anterior a membros da equipe do GSI na concretização da Política, e destacar a atuação discreta e decidida do Ministro Sérgio Etchegoyen que esteve no centro de todas estas modificações e contribuiu com seu prestígio para a aprovação unânime da Política Nuclear no CDPNB.

Paralelamente a reestruturação do Setor Nuclear que se desenhava em coerência com o reconhecimento de seu caráter estratégico, surgiu o problema criado com a paralisação das obras de Angra 3 que, a nosso ver, se deveu justamente ao não reconhecimento, na decisão de interromper sua construção, de seu caráter estratégico.

Centenas de milhões de dólares foram perdidos nesse atraso que, fundamentalmente, se deveu a aplicação, a nosso ver incorreta, da regra contábil do impairment que tornou a Eletronuclear insolvente e incapaz de utilizar empréstimos já negociados, contribuindo para arrastar a controladora Eletrobras para uma situação de insolvência prática que só foi evitada por seu caráter estatal. Uma simples decisão de rever a tarifa futura, que sempre esteve na mão do próprio Governo Federal, provocou esse prejuízo que deve chegar, em reais, a uma cifra bilionária.

Todos os movimentos já realizados levam a crer que a construção de Angra 3 pode agora ser feita com recursos de subsidiárias da própria Eletrobras ou externos, simplesmente porque foi tomada uma resolução sobre a tarifa futura. A possível participação de recursos externos segue possível e provável, sem que se coloque em risco o controle nacional da geração nuclear. A atual direção da Eletronuclear exerceu e está exercendo papel crucial no equacionamento do problema. A manutenção dos dirigentes e o anunciado apoio do Ministro do MME e da própria Presidência à conclusão de Angra 3 são sinais positivos, mas não resolveram em definitivo o problema de recursos financeiros necessários.

Também como consequência implícita do desenho da Política Nuclear, surgiu a perspectiva de parcerias com a iniciativa privada na exploração mineral. Na legislação atual existe o monopólio da exploração dos minerais nucleares. Um minerador que encontre urânio associado no minério que explora não tem nenhum interesse em revelar o achado e até o esconde das autoridades. Se a quantidade for pequena ele será obrigado a entregar à CNEN a quantidade correspondente em produto acabado sem receber nenhum pagamento. Se a presença do minério nuclear for importante, ele pode ser impedido de continuar a mineração.

A saída desse impasse já vem sendo procurada pela própria INB que detém o monopólio na mineração nuclear no caso concreto de fosfato associado ao urânio em Santa Quitéria, no Ceará. A solução aventada seria um consórcio com empresa privada. O Grupo GT-3 do CDPNB vem tratando do tema. Existe uma série de situações intermediárias onde a venda do urânio secundário extraído à INB poderia ser lucrativa tanto para o minerador como para a estatal. A solução deste impasse não precisa, em princípio, passar pela revogação do monopólio, mas provavelmente necessite de alteração na legislação. Uma das soluções seria substituir a obrigação de entrega gratuita à CNEN e oferecer a possibilidade da compra do concentrado de urânio pela INB.

No caso do tório, cujo mercado interno e externo é limitado, a solução é mais complexa. Por exemplo, na obtenção de terras raras de areias monazíticas no Brasil, o concentrado de hidróxido tório gerado (torta II) continua como um problema de resíduo radioativo ainda não solucionado. Embora não seja considerado um rejeito, atualmente é fonte de despesas para a INB juntamente com o rejeito propriamente dito.

Deve-se lembrar, enfim, que existem tecnologias na área do ciclo de combustível nuclear que se configuram como estratégicas e estão sujeitas a controles e barreiras na área internacional. Isto não inclui a fase de extração e beneficiamento de minérios. Apenas a partir da comercialização do produto purificado é que existe um componente estratégico importante. Já discutimos esse assunto anteriormente e também assinalamos que o mesmo critério pode ser aplicado aos radioisótopos nucleares onde somente a separação primária dos produtos de fissão deve ser considerada estratégica e não poderia ser entregue à iniciativa privada. Esses assuntos também têm sido objeto de discussão dos GTs do GSI/PR.

Um longo caminho no estabelecimento e concretização das estratégias adequadas à implantação da Política Nuclear deve ainda ser percorrido. Várias das diretivas deveriam ser objeto de estudos e detalhadas sob a forma de estratégias que seriam parte de um Programa Nuclear  Brasileiro que deve ser explicitado.

O Próprio CDPNB precisa preencher a lacuna existente na medida em que o Programa Nuclear Brasileiro (PNB) cujo Desenvolvimento (D) deve cuidar, não existe formalmente.

A visualização da continuidade de esforços, ao longo de vários governos de diferentes tendências, permite encarar de maneira positiva a perspectiva que ela se firme como Política de Estado e atinja seus objetivos.

[1] O CDPNB foi criado por meio de Decreto datado de 2 de julho de 2008 e foi alterado pelo Decreto de 22 de junho de 2017. O CDPNB este inativo durante o Governo Dilma, em 2017 foi reativado e sua Secretaria Executiva passou da Casa Civil para o GSI.

[2] Algumas siglas usadas neste artigo: CDPNB – Comitê de Desenvolvimento do Programa Nuclear Brasileiro, CNEN – Comissão Nacional de Energia Nuclear, CTMSP – Centro Tecnológico da Marinha em São Paulo, GSI/PR – Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, INB – Indústrias Nucleares Brasileiras e NUCLEP Nuclebras Equipamentos Pesados, agora vinculadas ao MME – Ministério das Minas e Energia, MCTIC – Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovação e Comunicações.

[3] Não é exatamente coincidência que o Alte. Noriaki Wada, que coordenou as atividades na área nuclear no GSI, tenha sido  indicado para comandar o Centro tecnológico da Marinha em São Paulo – CTMSP.

[4] Esta situação será resolvida brevemente com a exploração de outra ocorrência próxima a atual usina.

Comentário Recebido:

Recebemos do Alte. Othon Pinheiro da Silva, que dispensa apresentações,  mensagem que, a nosso ver, encerra uma ideia que ainda é válida:

“Na década de 1980, era funcionário do IPEN o Dr. Alcídio Abrahão um dos engenheiros químicos mais competentes da história nuclear brasileira. Sugeri insistentemente à direção da CNEN e do IPEN que construíssemos, sob a liderança do Dr. Alcídio Abrahão, um laboratório de desenvolvimento de técnicas de ” abertura do minério ” para economicamente aproveitar o conteúdo de urânio das ocorrências minerais.

Estas técnicas de abertura seriam disponibilizadas às mineradoras e seria garantida a compra pela INB do urânio a preços do mercado internacional de longo prazo. A INB manteria o estoque para suprimento de nossas usinas nucleares e venderia ao mercado internacional o excedente comunicando as vendas a AIEA ( a ABACC ainda não existia) .

Na ocasião, a ideia não foi rechaçada nem aprovada. Se tivesse sido adotada, ela poderia evitar o constrangimento do Brasil comprar urânio externamente que é quase igual ao que seria o Brasil comprar minério de ferro. A abertura correta do minério minimiza rejeitos e procura a economicidade.”

A nosso ver, essa ideia pode ainda ser aproveitada hoje. Infelizmente. não temos mais o Dr. Alcídio Abraão cuja contribuição foi importantíssima para o desenvolvimento do ciclo nuclear no Brasil, mas ainda temos o IPEN e, vale lembrar, que também o CDTN, em Belo Horizonte, tem experiência com diversos minérios e uma instalação para testar metodologias de abertura, além disso, temos agora a experiência acumulada pela própria INB.

O ponto central da ideia seria facilitar a participação da iniciativa privada na produção de minérios onde o urânio é um produto secundário, dando assistência técnica e adquirindo o produto ao preço internacional médio. Separá-lo geraria um bônus ao minerador ao invés do atual ônus de ter que entregar o produto acabado à CNEN. Dispor de fontes variadas de urânio no país aumenta a segurança no abastecimento.

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