E&E 108

Procução de petróleo no Brasil

Economia e Energia 

Nº 108, janeiro a junho de 2021- Ano XXIV
Disponível em: http://ecen.com.br
e http://ecen.com (números anteriores)

Revisão de Abril de 2023

 

Editorial:

Ciclo do Petróleo no Brasil?

A descoberta do Pré-Sal despertou a esperança de que estaríamos iniciando, nesta terceira década do século 21, um novo ciclo de riqueza no Brasil, alavancado pelo petróleo.

Nosso sonho era que o ciclo de petróleo não seria como os demais ciclos econômicos de nossa História. Neles, na fase de ascensão, os excedentes gerados enriqueciam uns poucos e, na decadência, ficávamos expostos a um problema duplo: a queda nos excedentes e os problemas sociais da má distribuição de renda gerada no ciclo. Além disso, em quase todos os ciclos a maior parte da riqueza foi acumulada no exterior.

Um bom exemplo histórico é o do ciclo do ouro que durou todo o século dezoito. O uruguaio Eduardo Galeano sintetizou bem esse ciclo na frase: “O ouro brasileiro deixou buracos no Brasil, templos em Portugal e fábricas na Inglaterra.”

O nº 108 da Revista E&E pretende reabrir o debate sobre as perspectivas para o Ciclo de Petróleo no qual supostamente estamos ingressando. O modelo, concebido para a exploração do petróleo do Pré-Sal, foi exposto nesta revista em vários artigos.

Uma compilação do que publicamos está reunida no livro “O Pré-Sal e o desenvolvimento do Brasil: Rompendo as Amarras” disponível no site Brasil 2049. Este modelo influenciou o arcabouço legal construído para o Setor que, nesses anos de obscurantismo, vem sendo criminosamente desmontado.

Com o petróleo do Pré-Sal podia e ainda pode ser diferente. Esse petróleo de águas e solos profundos não é uma commoditie qualquer. Exige a montante e a jusante uma sofisticada tecnologia na qual a Petrobrás é internacionalmente reconhecida como pioneira. Na linguagem da indústria do petróleo, a Petrobras dominou as fases upstream, midstream e downstream ou seja, todas as fases da cadeia do petróleo.

Isso quer dizer que a empresa petrolífera brasileira domina o cerne da tecnologia. Com isso, é capaz de especificar suas necessidades a fornecedores aqui e no exterior e, quando necessário, de formar uma rede industrial local de fornecedores e sócios privados para atender suas necessidades. Para isso, conta também com excelente Centro de Pesquisa associado a redes tecnológicas universitárias.

Como exemplo dessa capacidade de mobilização, está a indústria da Construção Naval que teve uma fase de ouro com as encomendas realizadas a partir da exigência de conteúdo local e está hoje quase inteiramente ociosa.

Na exploração do pré-sal estávamos diante de dois modelos: o da Noruega e o da Holanda. No primeiro país, a exploração do petróleo serviu de base para instalar uma indústria petrolífera pujante, sob a liderança da estatal Statoiol (hoje Equinor). Na expansão da extração a preferência foi dada para empresa nacional. A Equinor hoje exerce atividade mundial, inclusive no Brasil. No segundo, o afluxo de divisas tornou não competitiva a produção local e provocou uma crise social. Terminada a entrada de recursos oriundos do petróleo, a Holanda se viu mais pobre que antes. Imaginávamos que o Brasil seria a Noruega dos trópicos. Enquanto isso, do outro lado do Atlântico, a Nigéria e outros países, beneficiados com excelentes reservas, tomavam o caminho contrário, radicalizando a “doença holandesa”.

De 2015 para cá, demos passos catastróficos para anular esse sonho que parece estar acabando justamente quando o petróleo do pré-sal já é uma realidade e domina a produção nacional. Esse petróleo, que ainda pode ser nosso, é um definitivo caminho para romper as amarras para o desenvolvimento.

O Petróleo e a Eletricidade foram energias, em torno das quais se uniram todas as forças da brasilidade, civil e militar e os capitais públicos e privados.

Através das empresas mistas Petrobras e Eletrobras, o Brasil alcançou o domínio de toda a cadeia produtiva do Petróleo e Gás e estabeleceu a maior rede mundial integrada de energia elétrica. Na verdade, Petrobras e Eletrobras foram pontes que atravessaram, em trajetória surpreendente e quase inexplicável, a rota que começou com Vargas, se consolidou no Regime Militar, chegando até tempos mais democráticos, consagrada na Constituição de 1988.

Nestes tempos difíceis, a brasilidade ainda resiste à obscuridade e aos que querem entregar por uma ninharia o controle do patrimônio construído com nosso capital a não residentes e até estatais de outros países.

Lá se vão, ardilosamente, pedaços da Petrobras. Já a Eletrobras, está por pouco de ser varrida da história nacional. Em ambos os casos, deixando lugar a monopólios ou oligopólios que tendem a ficar sob controle de não residentes.

Só em torno da brasilidade podemos reunir de novo os brasileiros que, nascidos aqui ou não, escolheram construir aqui sua vida, família e residência.

Carlos Feu Alvim

Livro disponível na internet: 
O Pré-Sal e o desenvolvimento do Brasil:
Rompendo as Amarras

José Fantine e Carlos Feu Alvim

https://brasil2049.com/o-pre-sal-e-o-desenvolvimento-do-brasil/

Nota da revisão deste número da E&E, em Abril de 2023

Esta apresentação teve como ponto de partida palestra sobre o ciclo do petróleo apresentada no “Webinário” do Cembra – Centro de Excelência para o Mar Brasileiro em 18 de março de 2021 como preparação para a 3ª Edição do livro Brasil e o Mar no Século XXI. Nossa intenção é apresentar uma versão completa e ampliada de toda a palestra. Outros pontos deverão ser aprofundados em próximos artigos.


Vídeo Cembra Energia nos oceanos:

https://www.youtube.com/watch?v=ce43-jG7FbU&t=10997s

 

Artigo:

Os ciclos de energia no mundo

Carlos Feu Alvim, Olga Mafra e José Israel Vargas

Sumário

 

Os ciclos dos energéticos e  a resiliência dos fósseis.

As transições entre as energias primárias.

Ajuste preliminar para chegar a projeções.

Evolução da matriz energética mundial expressa em exajoules.

A má distribuição da energia entre países e pessoas.

Conclusões Preliminares.

Bibliografia

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Resumo:

Praticamente em toda a existência humana (homo sapiens), estimada em 300 mil anos[1] (Handwerk, 2021), a fonte energética quase exclusiva foi a diretamente disponível na natureza, a energia solar; seja na forma direta (luz e calor) seja na acumulada pela biomassa (alimentos e lenha).

A utilização das fontes hídrica e eólica, fundamentalmente energia solar acumulada na natureza, remonta ao início da civilização, ou seja, há cerca cinco a dez milênios (Samuel, 2013).

Somente a partir da segunda metade do século XVII, há cerca de 250 anos, foram introduzidas, com maior intensidade, as chamadas fontes fósseis: carvão mineral, petróleo e gás natural, que propiciaram a eclosão da era industrial. Vale lembrar que as fontes fósseis são, a rigor, essencialmente energia solar, acumulada há milênios no solo terrestre.

Há cerca de 70 anos, a energia nuclear começou a ser utilizada na geração de eletricidade. Esta última é a única fonte, com participação significativa, que não provêm diretamente da energia solar que incide sobre o Planeta Terra.

As fontes de energia vêm se sucedendo em ciclos, cujo comportamento mundial e regional, é necessário conhecer para orientar o planejamento energético dos países, principalmente para aqueles ditos em desenvolvimento como o Brasil.

A ideia de ciclos relacionados a atividades socioeconômicas é atrativa na medida que permite uma visão macro de fenômenos muito complexos que envolvem a sociedade humana. São famosos os ciclos de Kondratiev no trabalho pioneiro The Long Waves in Economic Live (Kondratiev, 1935) que pretendem descrever os ciclos econômicos. Cesare Marchetti (Marchetti C. , 1979) estendeu a análise de ciclos a diversos fenômenos socioeconômicos a maioria relacionados ao hemisfério ocidental e José Israel Vargas (Vargas, A Prospectiva Tecnológica: Previsão com um Simples Modelo Matemático, 2004) aplicou estas ideias a vários casos, muitos deles envolvendo fenômenos brasileiros.

Neste artigo, comparamos as projeções feitas para as participações das diferentes energias no consumo mundial, baseados em dados até 1985 e extrapolados até 2050. As projeções da época são comparadas com o efetivamente ocorrido no período 1965 a 2021.

Como resultado, conclui-se que o processo de substituição entre energéticos persiste, mas a duração dos ciclos dos combustíveis fósseis parece superar, em muito, às projeções que se faziam logo após à crise mundial de preços de petróleo.

Para os que levam a sério alegação que a queda da demanda de petróleo e gás natural justificaria apressar a produção do pré-sal, mostramos que o argumento não se sustenta frente ao comportamento da demanda mundial onde o petróleo e gás natural seguirão predominantes por várias décadas. É o que mostra a inércia do comportamento do consumo das fontes energéticas ao longo de mais de meio século.

Esse comportamento também nos leva a encarar, com algum ceticismo, os resultados dos esforços mundiais acumulados na contenção do efeito estufa quando se constata o pouco que foi feito neste sentido, ao longo dos quase 30 anos, desde a Conferência Rio 92.

Palavras-Chave:

Energia primária, energia, ciclos energéticos, carvão, petróleo, gás natural, energias renováveis, hidroeletricidade, energia nuclear. combustíveis fósseis, combustíveis não-fósseis

Cirvas de Kondratiev produção e consumo de carvão e gusa na França e Inglaterra

Ilustração 1. Ciclos de carvão e de gusa no trabalho pioneiro de Kondratiev (Kondratiev, 1935) sobre as Ondas de Longa Duração na Economia

 

O Petróleo e gás natural seguem predominantes

Os ciclos dos energéticos e
a resiliência dos fósseis

As fontes primárias de energia concorrem entre si tanto no nível nacional como no global. Nessa competição, influem as características das fontes, sua disponibilidade em cada país e seu custo. Ultimamente, as questões sobre o impacto ambiental têm alcançado maior relevância, por outro lado, o risco de desabastecimento voltou a ser considerado explicitamente pelos países na eleição dos energéticos.

O petróleo, como energia finita, esgotará seu ciclo. As estatísticas indicam que ele passou pelo máximo de participação no consumo mundial quando atingiu 50% do mercado em 1973. Neste mesmo ano, a participação do conjunto Petróleo e Gás – P&G atingiu 67%. Ou seja, o petróleo atendia a metade das necessidades de consumo global e o conjunto P&G atendia dois terços dessa demanda.

Em 1973, eclodiu a Guerra do Yom Kipur, envolvendo primariamente árabes e israelenses. A intervenção do Ocidente em favor de Israel provocou restrições de exportação de petróleo e o choque de preços que quadriplicou o valor de seu barril. A existência da OPEP – Organização dos Países Exportadores de Petróleo – OPEP, fundada em 1960, permitiu, pela primeira vez, uma ação comum de um cartel de países que conseguiu impor preços de uma commodity na escala mundial. O mundo se convenceu que a dependência de um único tipo de produto, concentrado em uma região conflituosa era um risco e, sob a liderança dos países ricos da OCDE, foi estabelecida uma política de diversificar geograficamente as reservas e de reduzir a dependência mundial de P&G.

A Figura 1 mostra as previsões de Marchetti (Marchetti C. , 1979) para a substituição entre as fontes primárias de energia, baseada nos dados até 1948 (Marchetti C. , 1985). A participação F dos combustíveis no consumo mundial é representado em uma escala, dita logística, log(F/(1-F)).

Podemos ver, claramente, os ciclos energéticos acoplando os valores históricos de consumo e a suposta continuidade para os anos seguintes. Essas projeções com dados até 1948 são comparadas com o consumo efetivo por fonte primária de 1958 a 1980. Petróleo e gás natural (GN) seguiam trajetórias paralelas que refletem o fato de que o GN esteve, em uma primeira fase, associado à extração do petróleo.

O gás natural, associado à produção de petróleo, era inicialmente queimado no local de extração. Aos poucos, foi criada uma estrutura de transporte e distribuição que gerou um mercado próprio para o gás natural. Adicionalmente, algumas instalações próximas ao local de extração tornaram possível seu maior aproveitamento já na origem.

Participação das Energias Primárias no Consumo Mundial; Projeção Marchetti 1948

Figura 1: Projeções de Marchetti (com dados até 1948) e comparação com dados de consumo até 1984

A criação de um mercado específico para o gás natural, inicialmente associado, possibilitou a exploração do GN não associado e isso vem ampliando sua participação na matriz energética mundial. Esse gás (não associado) é extraído em poços em que ele é principal produto, com isto passou a ter um crescimento independente do petróleo e tenderia a superá-lo em participação.

Marchetti considerou que teria havido uma coincidência satisfatória entre as projeções e o consumo efetivo no período por ele estudado. Com efeito, o comportamento das participações de lenha, carvão, petróleo e gás natural foi previsto corretamente. Particularmente estava certa a previsão que a participação do petróleo passaria por um máximo nos anos setenta. A energia nuclear penetrava em ritmo superior ao previsto, mas isso pode ser considerado normal nessa fase inicial do ciclo.

Ou seja, na maior parte dos casos, as tendências apontadas se confirmaram como mostra o gráfico. A concordância torna-se mais notável, quando se considera que o período de previsão (1948 a 1984) foi de mudanças relevantes na composição do mercado de combustíveis.

No entanto, olhando-se mais de perto os dados, pode-se ver que, a partir de 1970, a participação do carvão não estava caindo nem a do gás natural crescendo como esperado. Isto foi interpretado como uma oscilação, similar as já observadas no passado. Os anos seguintes mostrariam, entretanto, que a discrepância nos anos 1970 não era uma oscilação, mas uma nova tendência para os anos posteriores.

Os dados da Figura 1 são mostrados na escala logística que lineariza a curva nos trechos de ascensão e descenso da participação. Além disso, nessa hipótese da projeção de Marchetti, as curvas relativas a todas as fontes teriam formas similares, com “inclinação” de subida e descida semelhantes.

A Figura 2 estende a comparação até 2019, os dados acrescentados são os da compilação efetuada, anualmente, pela British Petroleum – BP (Statistical Review of World Energy 2020, 2020).

Os critérios de equivalência entre as energias, adotados por Marchetti e pela BP[2], são diferentes. Para acoplar as curvas na transição entre as duas séries, representadas na Figura 2, os dados de anos comuns nas duas séries (1965 a 1984) foram “renormalizados”[3] pela média desses anos de maneira que houvesse continuidade nas curvas.

Figura 2: As mudanças de participação de petróleo, GN e carvão não seguem as projeções, permanecendo relativamente estáveis.

A Figura 2 serve para ilustrar a discussão qualitativa sobre as diversas transições entre energias primárias experimentadas no período. A renormalização efetuada, para “casar” os dados das duas séries não permite conclusões quantitativas.

Critérios de equivalência entre as energias primárias

Chamamos a atenção para o critério adotado pela base de dados da BP para representar as energias renováveis, inclusive a hídrica. Elas são valorizadas em função da energia térmica necessária para gerar eletricidade. Este procedimento atribui valor superior às energias renováveis frente às energias convencionais e permite comparar melhor as fontes que simplesmente se usássemos o valor calórico da energia usada[4]. A escala do gráfico é a adequada para estudar essas transições dentro do modelo adotado por Marchetti no qual se espera que os trechos, longe do ponto de máximo, sejam representados por retas.

Adotar algum tipo de equivalência entre as diversas fontes é uma necessidade quando se quer comparar sua participação na matriz energética[5] (Feu Alvim, Campos Ferreira, Eidelman, & Goldemberg, 2000). Dentro dessas equivalências, pode-se mostrar a evolução da participação das energias no consumo mundial. A energia hidráulica, por sua importância histórica, é representada em separado das energias denominadas renováveis que surgiram ou, mais propriamente, reviveram a partir das preocupações com o aquecimento global. No gráfico de Marchetti, está incluída a lenha, também renovável, não considerada nas estatísticas da BP que se ocupa apenas das energias comerciais.

As participações das energias primárias no consumo mundial, para dados posteriores a 1965, não seguiram as projeções de Marchetti. De modo geral, as participações variaram menos que o previsto. Como já anunciavam os anos 1970, o carvão e o petróleo não caíram como se esperava nem o gás natural subiu tanto. Para considerações de natureza quantitativa usaremos os dados da BP cuja evolução, em escala linear, é mostrada na Figura 3.

A Figura mostra curvas das energias primárias de 1965 a 2021

Figura 3: Evolução da participação das energias primárias no consumo mundial

As transições entre as energias primárias

Antes da análise quantitativa, vamos fazer uma passada qualitativa comparando os valores projetados e o efetivamente ocorrido, como mostrado na Figura 2. As duas primeiras transições, lenha/carvão e carvão/petróleo, se deram no sentido da substituição de um combustível por outro de maior densidade energética e facilidade de transporte. Com as transições posteriores, nem sempre ocorreu ou ocorre o mesmo.

Transição lenha/carvão mineral

A transição lenha/carvão mineral se deu entre dois combustíveis sólidos, sendo a substituição quase direta, sem grandes modificações nos equipamentos de uso. A BP não mostra o consumo da lenha e só passou a considerar os dados da biomassa quando seus combustíveis passaram a participar do comércio formal de energia. O item “Renováveis” abriu espaço para este tipo de energia nas estatísticas da BP.

É bom chamar a atenção que, os dados relativos ao consumo de lenha não são, em geral, disponíveis para os diversos países. Os próprios dados sobre o carvão mineral, anteriores a 1965 e mostrados na Figura 1, são difíceis de recuperar.

Transição carvão/petróleo

A transição carvão/petróleo é a de um combustível sólido para um líquido de maior densidade energética que reúne, praticamente, todas as vantagens de armazenamento, transporte e uso. Além disto, os derivados de petróleo são utilizáveis diretamente em motores. Isso abriu caminho para a enorme expansão dos veículos automotores. Ou seja, a oferta de petróleo deu lugar a sua utilização substituindo carvão e lenha em muitas aplicações estacionárias, mas deu também a oportunidade da criação do motor de explosão com dimensões adequadas ao uso veicular e isso criou um mercado novo para a energia. Pode-se dizer que os únicos obstáculos à transferência entre carvão e petróleo eram preço e disponibilidade. Estes dois fatores justificaram também a atual opção de China e Índia por carvão.

Transição petróleo/GN

O gás natural é, na maioria das aplicações, vantajoso na substituição de carvão e derivados de petróleo quando usado para gerar calor. Isso é válido, é claro, desde que disponível no local. Ele emite menos quantidade de CO2 por energia fornecida e, de modo geral, menos particulados. No entanto, sua transportabilidade é menor do que a dos derivados líquidos de petróleo que podem ser movimentados e armazenados a pressão e temperatura ambientes[6].

O gás natural também é utilizado como força motriz em veículos, inclusive em algumas cidades do Brasil, mas seu transporte em unidades móveis exige tanques, capazes de suportar pressões de 200 a 250 bar[7]. No Brasil sua utilização é comum em algumas cidades e foi estabelecida dentro de política concebida para estimular seu uso que tem preço competitivo para veículos de grande quilometragem anual. A alternativa para liquefazê-lo exige temperaturas muito baixas e containers criogênicos.

A substituição dos derivados de petróleo no transporte é a mais difícil de ser concretizada. O de outras fontes primárias exigiria a produção de combustível líquido como o álcool e/ou os óleos vegetais. Outra maneira é a utilização de um vetor como o hidrogênio e a própria eletricidade.

Na verdade, mesmo a utilização desses vetores não envolve uma única operação. Para o uso da eletricidade em um veículo automotor é necessário acumulá-la, sob a forma de energia química em uma bateria para, em seguida, reconvertê-la em eletricidade e daí em energia mecânica. Em cada uma dessas mudanças existe uma inevitável perda.

O uso de hidrogênio exige uma forma especial de armazenamento porque é altamente explosivo e para ser utilizado em um motor de combustão interna tem que passar pela baixa eficiência intrínseca deste tipo de motor[8]. Ou seja, a equivalência que favorece a energia renovável, como a da BP, não se justifica nesse caso e não pode ser valorizado pela quantidade de combustível necessário para gerar a eletricidade. O uso de célula de combustível[9] melhora a eficiência, mas também envolve perdas.

O hidrogênio tem problemas de estocagem, transporte e abastecimento ainda não inteiramente resolvidos[10]. O mesmo acontece com a eletricidade, como consequência, os veículos puramente elétricos não possuem ainda autonomia satisfatória, problema agravado por um tempo de reabastecimento muito longo. Consideráveis progressos tecnológicos foram alcançados nos últimos anos, mas persistem dificuldades para que essa contribuição seja estatisticamente significativa[11].

Em 2021, os produtos petrolíferos representaram cerca de 90% do uso total de energia do setor de transporte dos EUA. Os biocombustíveis contribuíram com cerca de 6%. O gás natural representou cerca de 4%, a maioria dos quais foi usada em compressores de gasodutos de gás natural. O uso de eletricidade por sistemas de transporte de massa forneceu menos de 1% do uso total de energia do setor de transporte”

Transição P&G/nuclear

A transição P&G/nuclear também vai no sentido de maior concentração do combustível por unidade de massa, mas não no de maior portabilidade da energia.

Para mostrar a concentração da energia nuclear, costuma-se dizer que uma pastilha de aproximadamente 1 cm3 e massa de 7 g, de óxido de urânio de um reator nuclear, fornece a energia de uma tonelada de carvão ou três barris de petróleo[12] (NEI, s.d.).

A imagem é esclarecedora, mas, em verdade, essa pastilha contendo urânio só produz essa energia em um reator quando associada a cerca de 100 t de outras pastilhas. A forma comercial, atualmente utilizada para o uso da energia nuclear é a geração elétrica em grandes usinas. Ou seja, a utilização da energia nuclear em veículos também passa por um vetor energético, normalmente a eletricidade, que tem que estar armazenada na forma de energia química nas baterias ou, eventualmente, pelo hidrogênio.

O reator nuclear é usualmente grande, precisa de sistemas de vapor para gerar eletricidade e de blindagem pesada para reduzir a radiação, atualmente só grandes navios e submarinos são capazes de transportá-los. Para o espaço, pequenos reatores usando, urânio altamente enriquecido, ou Pu239, podem ser utilizados em naves não tripuladas. Também existem geradores que usam a emissão de partículas carregadas ou o calor gerado no decaimento de radioisótopos, como o PU238, para produzir eletricidade (WNA – World Nuclear Association, 2021).[13].

Ou seja, o equipamento usado atualmente para extrair a energia nuclear para outros usos, é de grande volume e peso; isso faz com que a energia nuclear tenha como vetor de uso praticamente único a eletricidade, embora existam grandes possibilidades do uso do calor direto [14].

Uma observação importante se extrai do gráfico da Figura 2. O uso da energia nuclear subiu, de início, mais rapidamente que o previsto na projeção de Marchetti, mas atingiu um máximo de participação muito abaixo do projetado.

Atribui-se a interrupção do crescimento de sua participação no consumo aos problemas relacionados à segurança de funcionamento dos reatores nucleares revelados pelos acidentes de Three Mile Island (1979), Chernobyl (1986) e Fukushima (2011). Também nos parece necessário considerar as restrições ao uso da energia nuclear para não favorecer sua disseminação que poderia estimular a posse de explosivos nucleares para uso bélico em mais países[15]. Um dos sinais dessa pressão é a dificuldade internacional da aceitação da energia nuclear como alternativa aos combustíveis fósseis que só agora parece estar sendo removida. Após uma queda, sua contribuição na matriz energética mundial parou de cair e se manteve em cerca de 4% na última década.

Fusão nuclear

A participação da fusão nuclear, apesar do esforço tecnológico internacional, ainda não se anuncia como realidade na geração de eletricidade nos curto e médio prazos, embora tenha havido, ultimamente, alguns progressos tecnológicos[16].

Renováveis

O item “renováveis” apenas está presente na representação de Marchetti (Figura 1), na forma de lenha cujo uso estaria praticamente esgotado. Não havia, à época, a perspectiva do ressurgimento do uso de renováveis que estamos assistindo.

Também na Figura 1, os dados da energia hidráulica não foram incluídos apesar de já terem participação próxima da atual (7%). Podemos especular que é porque seu comportamento não se adeque ao modelo de competição adotado ou porque o universo representado seria somente o de combustíveis.

Na mesma escala da Figura 2, foram adicionados os dados de 1965 a 2021, da compilação da BP. Os gráficos mostram o consumo dos combustíveis formalmente comercializados e isso não inclui a lenha. No Brasil, dispomos de dados sobre a lenha, que consta do Balanço Energético Nacional – BEN/EPE/MME do Brasil (Ministério de Minas e Energia, 2022), juntamente com o bagaço da cana de açúcar que não são considerados na compilação da BP. Isto decorre, em parte, da relevância da biomassa em nossa matriz energética.

As energias denominadas renováveis, hoje apresentadas como novidade, representam um retorno a energias tradicionais ligadas aos primórdios da civilização que foram “ressuscitadas” pela tecnologia atualmente disponível.

Lembremos que a energia eólica já é usada, há séculos nos moinhos e foi usada há milênios, na propulsão naval ao longo do Nilo. A energia solar, anteriormente usada na secagem artesanal e industrial, passou a ser usada em painéis solares para a geração de calor e, principalmente, de eletricidade. Outro exemplo de energia renovável é a dos álcoois (etanol e metanol) e óleos vegetais usados em motores a explosão. Esses óleos e os de animais, como a baleia, portanto da biomassa, já foram importantes fontes de energia luminosa no passado. A base de dados da BP já contabiliza os combustíveis líquidos de origem vegetal nos quais o Brasil é pioneiro no uso comercial.

Podemos considerar fracassado o modelo de substituição adotado por Marchetti no caso das energias primárias?

O comportamento em ciclos do uso de energia das diferentes fontes tem uma elegância que fascina a mente humana. É natural, portanto, que procuremos emendar o modelo que é muito útil para compreender e aceitar a inevitável substituição entre as energias ao longo do tempo.

Está implícito no modelo Marchetti uma interação da sociedade com os fenômenos de penetração de um combustível no mercado. Uma das maneiras mais conhecidas dessa interação são os preços e custos de mercadorias ou serviços concorrentes. No caso da energia, o preço mais importante é da energia dominante, o petróleo.

O modelo Marchetti considera que as macrotendências prevalecerão no longo prazo. Já comentamos, sobre a Figura 1, que, usando dados de até1948, as projeções funcionaram bem até 1984. Para os dados até 2021 verificamos que a velocidade das mudanças foi muito menor do que a esperada.

No entanto, as tendências apontadas para o longo prazo estavam corretas, a saber:

  • A lenha e carvão mineral continuaram a decrescer,
  • A participação do petróleo passou por um máximo bem localizado na Figura 1 (em 1973) e continuaria a decrescer,
  • O gás natural teria um uso crescente, possivelmente superando o petróleo,
  • Nuclear era a energia emergente e
  • A fusão só entraria na matriz mundial no longo prazo.

Os que trabalham com o modelo, inclusive o cientista José Israel Vargas que, no artigo já mencionado e em outros (Vargas, Ciência em tempo de crise 1974-2007, 2007), identificou que, em muitos casos, não existe um único processo ao longo do tempo, mas podem existir vários ciclos que se sucedem. Como aprendemos nas pandemias, surgem no mesmo local diferentes ondas ao longo do tempo e/ou ondas não simultâneas em diversas localizações relativamente isoladas. Isso aconteceu na competição energética ao menos no caso do uso de carvão como mostra a Figura 3.

Na análise da evolução por regiões do mundo, percebemos que essa nova “onda” do uso de carvão mineral aconteceu, no início do século atual em virtude das necessidades de energia para o rápido desenvolvimento dos BRICS, como mostrado na Figura 4[17].

Figura sobre a evolução da participação das energias primárias no BRICS

Figura 4: O carvão é a principal fonte primária usada pelos BRICS, existe uma segunda onda de participação do seu consumo desencadeada pelo “boom” econômico de China e Índia.

Em próximo artigo, investigaremos a influência de preços da fonte energética predominante (o petróleo) como determinante no comportamento das transições entre energéticos. Também serão abordados aspectos relativos ao problema da emissão de gases de efeito estufa que está estreitamente ligada ao consumo dos combustíveis e de como as políticas e acordos internacionais teriam influenciado objetivamente nesse consumo.

Proximamente, aprofundaremos a abordagem sobre as diferenças na participação das energias primárias por conjuntos de países ao longo do tempo.

Ajuste preliminar para chegar a projeções

A aspiração do modelo usado por Marchetti é oferecer uma visão do futuro baseada no comportamento passado. A ideia é que estamos lidando com um sistema de grande inércia que seguirá seu rumo uma vez que, supostamente, é capaz de identificar as forças sociais, econômicas e a própria disponibilidade dos recursos naturais.

 Revendo a Figura 2, mostrada na miniatura ao lado, verificamos que os acréscimos de dados a partir de 1965 mostraram, quantitativamente, um comportamento do consumo, bem diverso da suposição simplificadora de Marchetti. O que podemos deduzir do quadro de participação dos diferentes tipos de energia primária é que a crise de abastecimento e preço de petróleo e derivados dos anos 1970 estabeleceu um novo padrão de evolução de curva das participações das fontes energéticas primárias, ao longo do tempo, em uma escala logística. Não obstante essa mudança na “velocidade” das substituições as macrotendências, como já assinalamos, foram mantidas.

O esquema na Figura 5 ilustra esse comportamento. O Carvão (até 1970) seria o exemplo típico do comportamento anterior e o petróleo o do novo. A globalização pode ter contribuído para aumentar a inércia de substituição energética na medida que o consumo intensivo de energia, antes concentrado em poucos países, se generalizou nas últimas décadas.

Tipos de Curvas anterior a 1970 , (simétricas no tempo e, após 1970, decréscimo mais lento.)(
Participação (F) das energias primárias comparadas com as de Marchetti

Figura 5: Novo padrão observado para a evolução da participação de cada energia primária no consumo mundial.

Esta variação na “velocidade” da ocupação do nicho já foi usada anteriormente pelo próprio Marchetti como pode ser acompanhado nos vários exemplos reunidos por Vargas (Vargas 2020) em artigo neste periódico já mencionado anteriormente.

Também a globalização favoreceu a divulgação tecnológica e facilitou a penetração de novas fontes de energia e a implementação delas em alguns “nichos” específicos.

A penetração da energia nuclear, cuja curva parece seguir o novo padrão, encontrou um nicho limitado, na produção de eletricidade em substituição ao carvão mineral, óleo combustível e diesel em países desenvolvidos. Este nicho teria sido esgotado. A rápida expansão do nuclear foi favorecida, em um primeiro momento, pela transferência de tecnologia entre esses países. Já nos países do terceiro mundo, onde a transferência de tecnologia encontra obstáculos, ela não se desenvolveu. A ascensão tecnoindustrial no início deste século da China viabilizou a ampliação do nicho.

O ajuste de retas, na Figura 6, permite extrapolar a participação no consumo para os anos seguintes, com ajuda da escala logística.

Para as energias fósseis (petróleo, carvão e gás natural) e para a energia hidráulica (renovável) existe o tipo de comportamento histórico que dá base para essa extrapolação. Mesmo para a energia “renovável” (eólica e fotovoltaica principalmente) é possível uma extrapolação.

No caso do nuclear, houve uma rápida ascensão e ela teria passado por um máximo de participação no início do milênio (6,7 % em 2001). Sua participação teve uma trajetória de queda até 2012 quando se estabilizou em torno de 4,3% nos últimos dez anos. Especula-se sobre a possibilidade de uma nova onda nuclear puxada pelos BRICS que prestigiaria a única alternativa já testada como capaz de fornecer grandes blocos de energia não fóssil. Face as incertezas, optou-se por extrapolar a participação dessa energia considerando a manutenção da média dos últimos dez anos (2012 a 2021). Ensaios de outros cenários de maior participação da energia nuclear devem ainda ser explorados.

Evolução do consumo de energias em escala linear, mostrando os ajustes

Figura 6: Ajustes aos dados de consumo, em escala logística, visando a extrapolação da participação das energias primárias no consumo mundial.

Quanto às energias reunidas no título renováveis na coletânea da BP, podemos considerar que elas já demonstraram sua viabilidade, embora exigindo, para sua implementação, um ambiente de incentivo e até de subsídios.

A energia hidroelétrica já há muito mostrou sua viabilidade embora exista crescente oposição ambiental e econômica à implantação de usinas com grandes áreas inundadas e até mesmos de pequenas centrais, por diferentes razões. A projeção, feita a partir dos dados passados, sugere que a energia hidroelétrica mantenha a fração de participação observada nas últimas décadas, o que parece ser, no quadro atual, uma hipótese otimista.

Sobre as outras renováveis, a própria figura mostra a inércia de penetração que justifica os 40 anos para passar de 0,1% para 1%. Nos últimos 15 anos, sua participação passou de 1% para 7%. Essa aceleração é coerente com o processo esperado de uma energia em implantação. A extrapolação da penetração futura dessa fonte de energia considerou a “inclinação” para o período de 1990 a 2021. Para uma extrapolação até 2041, o procedimento é justificável. Para um período mais longo, deveríamos considerar, como em outros casos, uma participação máxima que essa energia pode vir a atingir. A experiência da Europa Ocidental, onde foi feito um grande esforço de instalação da geração elétrica com energias renováveis, sugere que esse limite estaria em cerca de 20% de participação. Neste ensaio não foi considerada essa limitação e o valor da participação das “Renováveis” chega a 23% em 2041. Um ensaio que incorpora essa limitação é mostrado no Anexo.

Na Figura 7, estão indicados os critérios de projeção da participação mundial das energias primárias no consumo na escala log (F/(1-F)) onde F é o percentual de participação.

Participação por energia primária no consumo mundial em escala logística

Figura 7: Critérios de projeção da participação das energias primárias no mundo, com destaque para o caso especial das energias nuclear e renovável.

Fundamentalmente, apenas para a energia nuclear não foi possível uma direta aplicação do método.

Na Figura 8 estão representadas, em escala linear, os resultados das projeções de participação indicadas na Figura 7. Além da conversão dos dados da figura anterior (em escala logarítmica) para percentagens, foi aplicado um fator de normalização de maneira que a soma das participações fosse 100%.

Projeções de participação no consumo mundial

Figura 8: Resultado da projeção da participação da energia primária para os próximos vinte anos

Essa simples extrapolação mostra que a energia fóssil permaneceria largamente dominante nas duas próximas décadas o que não seria uma boa notícia para limitar o aumento da temperatura atmosférica. Alternativas de projeção usando o modelo, acoplado a valores máximos de participação de cada energia primária poderia fornecer uma avaliação mais realista para a futura matriz energética mundial.

Um resultado interessante é que a extrapolação prevê, para o último ano, uma convergência das que seriam as quatro principais energias igualadas em cerca de 22% de participação: carvão mineral, petróleo, gás natural e renovável.

Do ponto de vista das emissões de gases de efeito estufa provenientes do uso de energia, é importante examinar como evoluiria a participação de energias não fósseis e seu complemento das fósseis no cenário considerado.

A evolução esperada para as participações fósseis X não fósseis é mostrada na Figuras 9 na escala linear.

Figura com a participação de fósseis e não fósseis no consumo de energia primáriia, com projeção de 20 anos. Figura 9: Resultado da projeção das participações dos fósseis e não fósseis em escala linear.

Além disto, como o total de consumo de energia continuará crescendo, essa mudança de participação não será refletida, obrigatoriamente, em redução das emissões. O efeito positivo de menor participação de fósseis será provavelmente anulado pelo crescimento regular do consumo energético como mostramos mais adiante.

Evolução da matriz energética mundial expressa em exajoules

A Figura 10 mostra o crescimento histórico do consumo mundial de energia total e de petróleo e gás (P&G). Para a surpresa dos planejadores energéticos, o crescimento de consumo de energia mundial, ao longo do tempo, pode ser expresso por uma reta com um índice de correlação R2 = 99%[18]. O valor é muito próximo do valor máximo desse coeficiente que é 1 ou 100%.

No planejamento energético, costumamos fazer projeções com dezenas de variáveis para chegar a um coeficiente de correlação menor e uma expressão válida por um espaço de tempo limitado. Chega a ser decepcionante descobrir que o consumo energético mundial, ao longo de mais de meio século (56 anos), possa ser descrito por uma equação de primeiro grau, ou seja, uma simples reta. A correlação é deveras surpreendente já que é o resultado de quase duas centenas de países com diferentes trajetórias econômicas e diferentes matrizes energéticas em um período no qual houve grandes variações no preço de energia.

A Figura mostra a evolução do consumo de energia e de petróleo e gás que, surpreendentemente são lineares com o tempo

Figura 10: Consumo de energia no mundo e ajuste linear para energia total e petróleo e gás.

No caso da energia dominante, P&G (petróleo e gás) encontramos o índice R2 = 98%. Podemos ver na Figura 10 que a correlação é ainda melhor a partir do ano de 1981, passada a turbulência nos preços e disponibilidade de petróleo dos anos 1970, quando alcança o valor de R2=99%.

A extrapolação da tendência de crescimento, observada ao longo de quase seis décadas, para as duas seguintes, combina com a aproximação adotada aqui para as participações das fontes no consumo, onde a evolução histórica tem forte influência na futura demanda.

Acoplando a tendência inercial de crescimento da energia total consumida no mundo (Figura 10), com a extrapolação de participação das energias (Figura 8) chegamos à Figura 12, em valores agregados.

Figura 11: Expansão do uso de energia no Mundo baseada na evolução das participações dos energéticos e no crescimento linear do consumo aqui projetados

O resultado mostrado na Figura 11 projeta, até 2041, a evolução do consumo mundial de fósseis, não fósseis e destaca ainda o conjunto Petróleo e Gás – P&G. A Figura 12 mostra os valores extrapolados para cada tipo de energia primária correspondente.

Figura 12: Expansão do uso das energias primárias no Mundo baseada em um crescimento linear do consumo (Figura 10) e na evolução da participação das energias primárias (Figura 8).

Esses resultados nos levam a sensações contraditórias: De um lado, a projeção oferece uma perspectiva de estacionamento no uso da energia fóssil, por outro lado, o resultado pode ser decepcionante porque prevê que o consumo de fósseis não será reduzido, apesar de sua menor participação na matriz energética e da perspectiva (otimista) de expansão das energias renováveis.

Ora, sabemos que o nível de emissão aproximadamente constante de gases de efeito estufa, ou seja, a estabilização das emissões não reduz a concentração de CO2 na atmosfera. A razão disso é que a emissão de gases de efeito estufa é, já atualmente, muito superior à capacidade de sua absorção na natureza.

Para deter o aumento da temperatura global, seria necessário reduzir substancialmente as emissões anuais.

A hipótese aqui considerada já contempla uma rápida expansão das energias renováveis e isto supõe uma ampla generalização de seu uso, a exemplo do que ocorreu na Europa Ocidental, onde a participação dos renováveis chegou a um limite que parece difícil de expandir no nível mundial.

Numa visão mais realista, a expansão das energias renováveis (solar e eólica principalmente), no ritmo de crescimento mostrado na Figura 12, não parece condizente com a disposição de países menos ricos para adotar fontes renováveis, sabidamente intensivas em capital. Ou seja, muitos países teriam que alcançar um índice muito superior a 25% de participação de “renováveis” para que a média atingisse esse valor.

Além disto, em cada país onde essas energias alcançam este limite aparece o problema da inevitável descontinuidade, na produção de eletricidade a partir das fontes solar e eólica ao longo de, praticamente cada dia. Isso implica na necessidade de um mecanismo de estocagem da energia elétrica ou na capacidade adicional instalada baseada em outro tipo de geração (normalmente térmica) que também exige investimentos em instalações de armazenamento ou de geração e transmissão que limitam a capacidade instalada deste tipo de energia. Apesar disto, a presente extrapolação não adotou, em nossa abordagem, um limite para a penetração das “renováveis”.  

A energia hidroelétrica e nuclear, também não fósseis e intensivas em capital, poderiam suprir parte das necessidades que possivelmente não possam ser atendidas pelas “renováveis” (eólica + solar). Teriam que ser vencidas limitações que atualmente freiam o crescimento das energias nuclear e hidro. Mesmo o pequeno crescimento projetado para o nuclear significa ainda grandes investimentos em novas usinas e na atualização e modernização das antigas para extensão de vida útil só para manter a atual participação. O aumento previsto na produção hidroelétrica é de menor monta e parece factível mesmo em um quadro de restrições ambientais como as atualmente existentes.

Mesmo assim, o quadro mostra um cenário claramente insuficiente para contenção do efeito estufa. A redução na participação dos combustíveis fósseis é bastante significativa, mas não impede que cerca de 70% do consumo mundial de energia ainda seria de combustível fóssil daqui a duas décadas.

A projeção que resulta das hipóteses aqui expostas não difere muito da previsão da U.S. Energy Information Administration para o consumo de energia até 2050 (EIA U.S. Energy Information Administration, 2020). Essas previsões aparecem acopladas ao histórico dos dados da BP para os anos anteriores na Figura 13.

Para comparar as duas projeções da própria EIA e a nossa (com dados da BP) é preciso que as unidades nas duas bases de dados de sejam coerentes. A possibilidade da utilização de um fator único, para as diferentes energias primárias, mostra coerência entre os dois conjuntos de dados, salvo para  as renováveis. Para essas energias, nesse caso incluindo a hidráulica, é necessário adotar uma equivalência onde os valores da EIA são 22% superiores aos valores adotados pela BP, ou seja, a EIA adota uma equivalência onde a energia renovável é mais valorizada que na da BP.

Resumindo, para que os dados históricos coincidissem no gráfico foi necessário, usar o fator de conversão entre as unidades. No caso das renováveis, foi necessário usar um fator para a conversão multiplicado por 1,22. A evolução histórica e a projeção dos consumos por energia primária da EIA, estão mostradas na Figura 13.

Figura 13: Histórico do uso das energias primárias no Mundo e projeção da Administração Internacional de Energia – EIA dos EUA

Na Figura 13, a designação de cores no gráfico é a do relatório da EIA. Os dados da EIA foram acoplados aos da BP de 1965 a 2000, expressos em exajoule por ano.

Feitas essas correções, é possível comparar nossas projeções, em linha pontilhada, com as da EIA na Figura 14.

Figura 14 Comparação das projeções EIA-US e deste trabalho (pontilhada).

Grosso modo, as previsões são semelhantes já que eles também preveem um consumo parecido nas renováveis, bastante coincidente para gás natural, carvão mineral e nuclear. A maior discordância vem da previsão para petróleo que na nossa é de baixa e a da EIA-US é de alta.

É interessante reforçar as coincidências já que elas confirmam prognósticos que parecem surpreendentes como a relevância do consumo de carvão, em particular, e dos fósseis de modo geral. Também é projetada, pela EIA, uma retomada maior do uso da energia nuclear que superaria em 2041 o consumo energético máximo já verificado.

A má distribuição da energia entre países e pessoas

 A desigualdade na distribuição de energia entre a população dos diferentes países acompanha a desigualdade da distribuição das riquezas.

No conjunto de países analisados, os da OCDE podem ser encarados como o grupo dos países ricos[19]. Uma boa medida do desequilíbrio de consumo energético é a relação do consumo per capita dos países da OCDE relativo ao dos demais países (não OCDE) cuja evolução é mostrada na Figura 15.

Figura 15: Redução da razão o consumo per capta OCDE / Não OCDE ao longo de meio século

Em números redondos, um residente da OCDE consome três vezes a energia de um “não OCDE” (dados de 2020). Em 1965, o habitante da OCDE tinha, em média, um consumo energético de sete vezes o do habitante da “não OCDE”. Para tomar dois grandes países símbolo como exemplo, o consumo per capta de energia dos EUA, em 1973, era 66 vezes o da Índia e; em 2020, ainda é 11 vezes maior que o indiano.

A boa notícia é que essa distribuição melhorou ao longo dos 56 anos, como mostrado na Figura 15. A desigualdade que pode ser medida pelo quociente [consumo per capta da OCDE] / [consumo per capta não OCDE] vem reduzindo ao longo dos anos e temos que encarar isto como um progresso, embora persistam grandes desigualdades internas de acesso à energia entre pessoas de cada país.

É interessante observar que a queda começou com o choque no preço do petróleo, em 1973, e foi interrompida em 1990 quando foi estabelecida a unipolaridade no poder mundial. A partir do início deste século, houve uma queda significativa do diferencial de consumo entre os países ricos (OCDE) e os demais (não OCDE) que foi puxada pela ascensão econômica dos BRICS (principalmente da China).

 

Conclusões Preliminares

Uma extrapolação da tendência da participação das energias primárias no consumo mundial até 2021, para as duas décadas seguintes foi feita, com base na metodologia sugerida por Marchetti e Vargas, adaptada à natureza do mercado energético. A tendência do consumo das fontes primárias, mesmo mantida a forte penetração das renováveis nos últimos vinte anos (até 2021), não parece ser capaz de reduzir, em termos absolutos, o uso das energias fósseis e o aumento do teor de CO2 na atmosfera.

Petróleo e Gás Natural seguirão como energias dominantes nas próximas duas décadas. Os dados históricos mostram uma forte resiliência das energias fósseis, inclusive do carvão mineral que apresenta o maior coeficiente de emissão de CO2 por unidade de energia usada. Um resultado surpreendente e preocupante é que a tendência observada ao longo das últimas cinco décadas mostra que o consumo mundial de carvão mineral poderá, de novo, superar o do petróleo.

Este não é um problema menor. No âmbito dos fósseis, havia um movimento de ascensão do gás natural e queda de carvão e petróleo. Este movimento favorecia a redução da emissão de CO2 no âmbito dos fósseis. A reversão desta tendência agrava o quadro das emissões causadoras do efeito estufa.

O consumo mundial de energia dobrou, desde a conferência Rio 92 que constatou, de forma definitiva, o problema do crescimento de CO2 e outros gases que contribuem para a elevação do efeito estufa na atmosfera terrestre e o consequente aquecimento esperado da atmosfera.

 A boa notícia no que se refere a esse maior consumo de energia veio no sentido de que foi reduzido o desequilíbrio de uso de energia por habitante entre os países e isso significou uma aproximação nas condições de vida entre países ricos e pobres.

Na segunda metade da década de 1970 e na primeira da de 1980, o mundo já passou por um grande esforço de redução do consumo de petróleo e gás natural que se seguiu à redução do uso de carvão mineral por razões de dependência de mão de obra que dificultava a regularidade do abastecimento. Um grande esforço econômico, tecnológico e industrial foi realizado para possibilitar essa mudança. A mudança da matriz energética não foi dramática como a antecipada pelas expectativas àquela época.

A imaginação humana aceita, sem muita crítica, a possibilidade de grandes mudanças  A lição que podemos extrair do passado é que as mudanças nuca são tão rápidas como desejamos e a realidade não se adequa a nossas projeções.

Vamos lembrar apenas um aspecto curioso: no final dos anos setenta, fazia furor nos congressos sobre energia, dirigidos ao terceiro mundo, o uso dos biodigestores de dejetos animais e até humanos. A dúvida no Brasil estava entre a adoção do modelo indiano ou do chinês e fazia sucesso a foto de um menino chinês levando os dejetos da família para o digestor em uma espécie de peneira. Hoje, China e Índia parecem haver alcançado seu caminho de desenvolvimento e têm como energia dominante o carvão mineral que muitos acreditavam estar caminhando para a extinção.

O verdadeiro desafio mundial é propiciar a melhoria da condição de vida dos mais pobres (que implica aumento do uso de energia) sem romper o equilíbrio climático. Isto só pode ser alcançado aumentando a proporção de não fósseis na matriz energética.

O Brasil é um bom exemplo de que isso é possível, muito em função de seus recursos naturais e de medidas tomadas no final da década de 1970 e início da de 1980 quando substituir petróleo era uma questão de sobrevivência.

Usando unidades mais amigáveis que o exajoule, o mundo emite 2,4 toneladas de CO2 por tonelada equivalente de petróleo (toe ou tep) de energia primária utilizada; já o Brasil emite apenas 1,4 (t de CO2/toe). Ou seja, o Brasil emite 58% de CO2 do que o mundo emite por unidade de energia utilizada. Entre os grandes países só a França apresenta um índice melhor (1,3) devido à grande participação da energia nuclear em sua matriz.

Na análise de casos de Brasil e França talvez esteja a chave para encontrar o caminho para a transição energética que o mundo precisa.

 

ANEXO 1

Hipótese alternativa e, possivelmente, mais realista de evolução do consumo mundial de fontes primárias

As energias renováveis vêm se difundido com maior facilidade nos países com maior capacidade de investimento e uma rede de transmissão e distribuição já estruturada. Deve-se supor que, a exemplo de todas as outras energias, exista um nicho específico para as energias renováveis.

No que se segue, procuramos preencher essa lacuna adotando a hipótese que esse nicho existe e esteja limitado a, 25% de participação no total.[20] Quanto ao carvão, a hipótese adotada é de que as oscilações no consumo de carvão são, na verdade, diferentes ciclos e que deveríamos considerar que a participação do carvão seguiria caindo conforme a tendência dos anos mais recentes.

Na Figura A1 mostramos o ajuste feito para os últimos 21 anos e a extrapolação indicada.

Figura A1: Projeção da participação de renováveis (F) no consumo mundial sendo F* = F/Fmax e Fmax = 0,25

A Figura A2 mostra os critérios adotadas para a extrapolação, por 20 anos, para esta projeção alternativa. 

Figura A2: Critérios alternativos de projeção do consumo de fontes primárias adotado nesse exemplo

A projeção do resultado das participações das diferentes fontes primárias, já renormalizadas para que a soma das participações seja igual a 100%, pode ser visto na Figura A3.

Figura A3: Expansão do uso das energias primárias no Mundo baseada em um crescimento linear do consumo e na evolução da participação das energias primárias limitando a participação de renováveis a 25% e supondo a redução do uso do carvão mineral.

As diferenças fundamentais entre o resultado das duas “rodadas” são o consumo de petróleo constante e queda no consumo de carvão mineral. A expansão do uso dos renováveis é menor assim como a do carvão mineral e registra-se um pequeno acréscimo do consumo da energia hidroelétrica e nuclear.

A Figura A4 mostra as extrapolações do uso das energias primárias fósseis e não-fósseis no mundo e a do petróleo e gás natural P&G, incluída nas fósseis.

Figura A4: Projeção do consumo de energias agrupadas em fósseis e não fósseis, mostrando ainda a evolução de petróleo e gás natural.

Figura A5: Melhor aproximação das projeções nesta hipótese com as da EIA-US e a deste cenário.

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Bibliografia:

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Notas:

[1] https://www.smithsonianmag.com/science-nature/essential-timeline-understanding-evolution-homo-sapiens-180976807/#:~:text=300%2C000%20Years%20Ago%3A%20Fossils%20Found%20of%20Oldest%20Homo%20sapiens&text=While%20human%20remains%20can%20survive,different%20species%20of%20human%20relatives.

[2] Os dados sobre a lenha não estão disponíveis na compilação da BP que considera apenas as energias ditas comerciais. Já os dados da energia hídrica não constam das séries dos trabalhos de Marchetti

[3] Os dados usados são [k+Log(f/(1-f)] onde f é a fração do consumo atendida pela fonte primária e k uma constante de normalização para fazer coincidir o período 1965 e 1984 para o qual se dispõe do gráfico original e os dados da BP. Forçando a sobreposição dos anos 1982 a 1984, foi possível obter uma boa coincidência entre as duas séries em todo o intervalo 1965 a 1884.

[4] Isto é particularmente válido no caso da energia hidráulica, no caso da energia solar pode ocorrer o inverso caso tomemos, como energia primária, a energia solar incidente no coletor.

[5] Desenvolvemos, em estudos publicados nessa Revista, a noção de energia equivalente que foi aplicada em projeções oficiais no Brasil. http://www.ecen.com/eee18/enerequi.htm

[6] Mesmo o gás liquefeito de petróleo – GLP, que é gasoso a temperatura ambiente, tem seu transporte facilitado por poder ser liquefeito à temperatura ambiente.

[7] O Brasil teria em 2017 1,8 milhões de veículos de um total mundial de 24 milhões.

https://gazeo.com/up-to-date/news/2018/How-many-NGVs-are-there-and-where,news,10074.html

[8] Esses motores, como os que funcionam nos veículos automotores comuns, têm sua eficiência limitada pela Termodinâmica, e isso dá origem ao fator próximo a três que favorece as energias renováveis.

[9] https://www.cemig.com.br/usina-do-conhecimento/veja-como-funciona-e-quais-aplicacoes-da-celula-a-combustivel-de-hidrogenio/

[10] https://gasenergy.com.br/os-desafios-da-armazenagem-e-transporte-de-hidrogenio-em-larga-escala/

[11] Em Abril de 2022 a EIA informava que o uso do eletricidade no transporte correspondia a 1% da energia usada em transporte nos EUA sendo a maior parte usada no transporte coletivo (trens, metrôs, etc.), a contribuição do biocombustível, em comparação correspondia a 5%.
“In 2021, petroleum products accounted for about 90% of the total U.S. transportation sector energy use. Biofuels contributed about 6%. Natural gas accounted for about 4%, most of which was used in natural gas pipeline compressors. Electricity use by mass transit systems provided less than 1% of total transportation sector energy use”. https://www.eia.gov/energyexplained/use-of-energy/transportation.php

[12] https://www.nei.org/fundamentals/nuclear-fuel

[13] https://world-nuclear.org/information-library/non-power-nuclear-applications/transport/nuclear-reactors-for-space.aspx

[14] O uso do calor direto do calor gerado pela energia nuclear é possível, mas ainda relativamente raro. As possibilidades e limitações desse uso, inclusive para geração de hidrogênio estão resumidas em https://www.iaea.org/publications/8692/advances-in-nuclear-power-process-heat-applications

[15] Esta hipótese nunca foi verificada na prática; EUA, antiga URSS, Inglaterra, França, China, Israel, Índia, Paquistão e Coreia do Norte desenvolveram diretamente sua capacidade militar, antes de se engajar na geração de energia para fins energéticos.

[16] https://www.bbc.com/news/science-environment-63950962

[17] Uma análise no consumo por país mostra que a China e a Índia são os responsáveis por esse comportamento dos BRICS.

[18] R2 é o desvio quadrático médio.

[19] Embora da organização também façam parte países menos ricos como Chile e México.

[20] Supõe-se que Fmax=0,25 e, ao invés de realizar o ajuste com F, vamos fazê-lo com F* = F/Fmax onde F é a participação dos renováveis no consumo mundial; o ajuste foi feito pelo ajuste de reta em uma escala log((F*/(1-F*)).

 

 

 

Editorial:

Ciclo do Petróleo no Brasil?

A descoberta do Pré-Sal despertou a esperança de que estaríamos iniciando, nesta terceira década do século 21, um novo ciclo de riqueza no Brasil, alavancado pelo petróleo.

Nosso sonho era que o ciclo de petróleo não seria como os demais ciclos econômicos de nossa História. Neles, na fase de ascensão, os excedentes gerados enriqueciam uns poucos e, na decadência, ficávamos expostos a um problema duplo: a queda nos excedentes e os problemas sociais da má distribuição de renda gerada no ciclo. Além disso, em quase todos os ciclos a maior parte da riqueza foi acumulada no exterior.

Um bom exemplo histórico é o do ciclo do ouro que durou todo o século dezoito. O uruguaio Eduardo Galeano sintetizou bem esse ciclo na frase: “O ouro brasileiro deixou buracos no Brasil, templos em Portugal e fábricas na Inglaterra.”

O nº 108 da Revista E&E pretende reabrir o debate sobre as perspectivas para o Ciclo de Petróleo no qual supostamente estamos ingressando. O modelo, concebido para a exploração do petróleo do Pré-Sal, foi exposto nesta revista em vários artigos.

Uma compilação do que publicamos está reunida no livro “O Pré-Sal e o desenvolvimento do Brasil: Rompendo as Amarras” disponível no site Brasil 2049. Este modelo influenciou o arcabouço legal construído para o Setor que, nesses anos de obscurantismo, vem sendo criminosamente desmontado.

Com o petróleo do Pré-Sal podia e ainda pode ser diferente. Esse petróleo de águas e solos profundos não é uma commoditie qualquer. Exige a montante e a jusante uma sofisticada tecnologia na qual a Petrobrás é internacionalmente reconhecida como pioneira. Na linguagem da indústria do petróleo, a Petrobras dominou as fases upstream, midstream e downstream ou seja, todas as fases da cadeia do petróleo.

Isso quer dizer que a empresa petrolífera brasileira domina o cerne da tecnologia. Com isso, é capaz de especificar suas necessidades a fornecedores aqui e no exterior e, quando necessário, de formar uma rede industrial local de fornecedores e sócios privados para atender suas necessidades. Para isso, conta também com excelente Centro de Pesquisa associado a redes tecnológicas universitárias.

Como exemplo dessa capacidade de mobilização, está a indústria da Construção Naval que teve uma fase de ouro com as encomendas realizadas a partir da exigência de conteúdo local e está hoje quase inteiramente ociosa.

Na exploração do pré-sal estávamos diante de dois modelos: o da Noruega e o da Holanda. No primeiro país, a exploração do petróleo serviu de base para instalar uma indústria petrolífera pujante, sob a liderança da estatal Statoiol (hoje Equinor). Na expansão da extração a preferência foi dada para empresa nacional. A Equinor hoje exerce atividade mundial, inclusive no Brasil. No segundo, o afluxo de divisas tornou não competitiva a produção local e provocou uma crise social. Terminada a entrada de recursos oriundos do petróleo, a Holanda se viu mais pobre que antes. Imaginávamos que o Brasil seria a Noruega dos trópicos. Enquanto isso, do outro lado do Atlântico, a Nigéria e outros países, beneficiados com excelentes reservas, tomavam o caminho contrário, radicalizando a “doença holandesa”.

De 2015 para cá, demos passos catastróficos para anular esse sonho que parece estar acabando justamente quando o petróleo do pré-sal já é uma realidade e domina a produção nacional. Esse petróleo, que ainda pode ser nosso, é um definitivo caminho para romper as amarras para o desenvolvimento.

O Petróleo e a Eletricidade foram energias, em torno das quais se uniram todas as forças da brasilidade, civil e militar e os capitais públicos e privados.

Através das empresas mistas Petrobras e Eletrobras, o Brasil alcançou o domínio de toda a cadeia produtiva do Petróleo e Gás e estabeleceu a maior rede mundial integrada de energia elétrica. Na verdade, Petrobras e Eletrobras foram pontes que atravessaram, em trajetória surpreendente e quase inexplicável, a rota que começou com Vargas, se consolidou no Regime Militar, chegando até tempos mais democráticos, consagrada na Constituição de 1988.

Nestes tempos difíceis, a brasilidade ainda resiste à obscuridade e aos que querem entregar por uma ninharia o controle do patrimônio construído com nosso capital a não residentes e até estatais de outros países.

Lá se vão, ardilosamente, pedaços da Petrobras. Já a Eletrobras, está por pouco de ser varrida da história nacional. Em ambos os casos, deixando lugar a monopólios ou oligopólios que tendem a ficar sob controle de não residentes.

Só em torno da brasilidade podemos reunir de novo os brasileiros que, nascidos aqui ou não, escolheram construir aqui sua vida, família e residência.

Carlos Feu Alvim

Livro disponível na internet: 
O Pré-Sal e o desenvolvimento do Brasil:
Rompendo as Amarras

José Fantine e Carlos Feu Alvim

https://brasil2049.com/o-pre-sal-e-o-desenvolvimento-do-brasil/

Sumário deste Número

Os ciclos dos energéticos e  a resiliência dos fósseis.

As transições entre as energias primárias.

Ajuste preliminar para chegar a projeções.

Evolução da matriz energética mundial expressa em exajoules.

A má distribuição da energia entre países e pessoas.

Conclusões Preliminares.

Bibliografia

Nota da revisão deste número da E&E em Abril de 2023:

Esta apresentação teve como ponto de partida palestra sobre o ciclo do petróleo apresentada no “Webinário” do Cembra – Centro de Excelência para o Mar Brasileiro em 18 de março de 2021 como preparação para a 3ª Edição do livro Brasil e o Mar no Século XXI. Nossa intenção é apresentar uma versão completa e ampliada de toda a palestra. Outros pontos deverão ser aprofundados em próximos artigos.

Vídeo Cembra Energia nos oceanos: https://www.youtube.com/watch?v=ce43-jG7FbU&t=10997s

Artigo:

Os ciclos de energia no mundo

Carlos Feu Alvim, Olga Mafra e José Israel Vargas

Resumo:

Praticamente em toda a existência humana (homo sapiens), estimada em 300 mil anos[1] (Handwerk, 2021), a fonte energética quase exclusiva foi a diretamente disponível na natureza, a energia solar; seja na forma direta (luz e calor) seja na acumulada pela biomassa (alimentos e lenha).

A utilização das fontes hídrica e eólica, fundamentalmente energia solar acumulada na natureza, remonta ao início da civilização, ou seja, há cerca cinco a dez milênios (Samuel, 2013).

Somente a partir da segunda metade do século XVII, há cerca de 250 anos, foram introduzidas, com maior intensidade, as chamadas fontes fósseis: carvão mineral, petróleo e gás natural, que propiciaram a eclosão da era industrial. Vale lembrar que as fontes fósseis são, a rigor, essencialmente energia solar, acumulada há milênios no solo terrestre.

Há cerca de 70 anos, a energia nuclear começou a ser utilizada na geração de eletricidade. Esta última é a única fonte, com participação significativa, que não provêm diretamente da energia solar que incide sobre o Planeta Terra.

As fontes de energia vêm se sucedendo em ciclos, cujo comportamento mundial e regional, é necessário conhecer para orientar o planejamento energético dos países, principalmente para aqueles ditos em desenvolvimento como o Brasil.

A ideia de ciclos relacionados a atividades socioeconômicas é atrativa na medida que permite uma visão macro de fenômenos muito complexos que envolvem a sociedade humana. São famosos os ciclos de Kondratiev no trabalho pioneiro The Long Waves in Economic Live (Kondratiev, 1935) que pretendem descrever os ciclos econômicos. Cesare Marchetti (Marchetti C. , 1979) estendeu a análise de ciclos a diversos fenômenos socioeconômicos a maioria relacionados ao hemisfério ocidental e José Israel Vargas (Vargas, A Prospectiva Tecnológica: Previsão com um Simples Modelo Matemático, 2004) aplicou estas ideias a vários casos, muitos deles envolvendo fenômenos brasileiros.

Neste artigo, comparamos as projeções feitas para as participações das diferentes energias no consumo mundial, baseados em dados até 1985 e extrapolados até 2050. As projeções da época são comparadas com o efetivamente ocorrido no período 1965 a 2021.

Como resultado, conclui-se que o processo de substituição entre energéticos persiste, mas a duração dos ciclos dos combustíveis fósseis parece superar, em muito, às projeções que se faziam logo após à crise mundial de preços de petróleo.

Para os que levam a sério alegação que a queda da demanda de petróleo e gás natural justificaria apressar a produção do pré-sal, mostramos que o argumento não se sustenta frente ao comportamento da demanda mundial onde o petróleo e gás natural seguirão predominantes por várias décadas. É o que mostra a inércia do comportamento do consumo das fontes energéticas ao longo de mais de meio século.

Esse comportamento também nos leva a encarar, com algum ceticismo, os resultados dos esforços mundiais acumulados na contenção do efeito estufa quando se constata o pouco que foi feito neste sentido, ao longo dos quase 30 anos, desde a Conferência Rio 92.

Palavras-Chave:

Energia primária, energia, ciclos energéticos, carvão, petróleo, gás natural, energias renováveis, hidroeletricidade, energia nuclear. combustíveis fósseis, combustíveis não-fósseis

Cirvas de Kondratiev produção e consumo de carvão e gusa na França e Inglaterra

Ilustração 1. Ciclos de carvão e de gusa no trabalho pioneiro de Kondratiev (Kondratiev, 1935) sobre as Ondas de Longa Duração na Economia

 

O Petróleo e gás natural seguem predominantes

Os ciclos dos energéticos e
a resiliência dos fósseis

As fontes primárias de energia concorrem entre si tanto no nível nacional como no global. Nessa competição, influem as características das fontes, sua disponibilidade em cada país e seu custo. Ultimamente, as questões sobre o impacto ambiental têm alcançado maior relevância, por outro lado, o risco de desabastecimento voltou a ser considerado explicitamente pelos países na eleição dos energéticos.

O petróleo, como energia finita, esgotará seu ciclo. As estatísticas indicam que ele passou pelo máximo de participação no consumo mundial quando atingiu 50% do mercado em 1973. Neste mesmo ano, a participação do conjunto Petróleo e Gás – P&G atingiu 67%. Ou seja, o petróleo atendia a metade das necessidades de consumo global e o conjunto P&G atendia dois terços dessa demanda.

Em 1973, eclodiu a Guerra do Yom Kipur, envolvendo primariamente árabes e israelenses. A intervenção do Ocidente em favor de Israel provocou restrições de exportação de petróleo e o choque de preços que quadriplicou o valor de seu barril. A existência da OPEP – Organização dos Países Exportadores de Petróleo – OPEP, fundada em 1960, permitiu, pela primeira vez, uma ação comum de um cartel de países que conseguiu impor preços de uma commodity na escala mundial. O mundo se convenceu que a dependência de um único tipo de produto, concentrado em uma região conflituosa era um risco e, sob a liderança dos países ricos da OCDE, foi estabelecida uma política de diversificar geograficamente as reservas e de reduzir a dependência mundial de P&G.

A Figura 1 mostra as previsões de Marchetti (Marchetti C. , 1979) para a substituição entre as fontes primárias de energia, baseada nos dados até 1948 (Marchetti C. , 1985). A participação F dos combustíveis no consumo mundial é representado em uma escala, dita logística, log(F/(1-F)).

Podemos ver, claramente, os ciclos energéticos acoplando os valores históricos de consumo e a suposta continuidade para os anos seguintes. Essas projeções com dados até 1948 são comparadas com o consumo efetivo por fonte primária de 1958 a 1980. Petróleo e gás natural (GN) seguiam trajetórias paralelas que refletem o fato de que o GN esteve, em uma primeira fase, associado à extração do petróleo.

O gás natural, associado à produção de petróleo, era inicialmente queimado no local de extração. Aos poucos, foi criada uma estrutura de transporte e distribuição que gerou um mercado próprio para o gás natural. Adicionalmente, algumas instalações próximas ao local de extração tornaram possível seu maior aproveitamento já na origem.

Participação das Energias Primárias no Consumo Mundial; Projeção Marchetti 1948

Figura 1: Projeções de Marchetti (com dados até 1948) e comparação com dados de consumo até 1984

A criação de um mercado específico para o gás natural, inicialmente associado, possibilitou a exploração do GN não associado e isso vem ampliando sua participação na matriz energética mundial. Esse gás (não associado) é extraído em poços em que ele é principal produto, com isto passou a ter um crescimento independente do petróleo e tenderia a superá-lo em participação.

Marchetti considerou que teria havido uma coincidência satisfatória entre as projeções e o consumo efetivo no período por ele estudado. Com efeito, o comportamento das participações de lenha, carvão, petróleo e gás natural foi previsto corretamente. Particularmente estava certa a previsão que a participação do petróleo passaria por um máximo nos anos setenta. A energia nuclear penetrava em ritmo superior ao previsto, mas isso pode ser considerado normal nessa fase inicial do ciclo.

Ou seja, na maior parte dos casos, as tendências apontadas se confirmaram como mostra o gráfico. A concordância torna-se mais notável, quando se considera que o período de previsão (1948 a 1984) foi de mudanças relevantes na composição do mercado de combustíveis.

No entanto, olhando-se mais de perto os dados, pode-se ver que, a partir de 1970, a participação do carvão não estava caindo nem a do gás natural crescendo como esperado. Isto foi interpretado como uma oscilação, similar as já observadas no passado. Os anos seguintes mostrariam, entretanto, que a discrepância nos anos 1970 não era uma oscilação, mas uma nova tendência para os anos posteriores.

Os dados da Figura 1 são mostrados na escala logística que lineariza a curva nos trechos de ascensão e descenso da participação. Além disso, nessa hipótese da projeção de Marchetti, as curvas relativas a todas as fontes teriam formas similares, com “inclinação” de subida e descida semelhantes.

A Figura 2 estende a comparação até 2019, os dados acrescentados são os da compilação efetuada, anualmente, pela British Petroleum – BP (Statistical Review of World Energy 2020, 2020).

Os critérios de equivalência entre as energias, adotados por Marchetti e pela BP[2], são diferentes. Para acoplar as curvas na transição entre as duas séries, representadas na Figura 2, os dados de anos comuns nas duas séries (1965 a 1984) foram “renormalizados”[3] pela média desses anos de maneira que houvesse continuidade nas curvas.

Figura 2: As mudanças de participação de petróleo, GN e carvão não seguem as projeções, permanecendo relativamente estáveis.

A Figura 2 serve para ilustrar a discussão qualitativa sobre as diversas transições entre energias primárias experimentadas no período. A renormalização efetuada, para “casar” os dados das duas séries não permite conclusões quantitativas.

Critérios de equivalência entre as energias primárias

Chamamos a atenção para o critério adotado pela base de dados da BP para representar as energias renováveis, inclusive a hídrica. Elas são valorizadas em função da energia térmica necessária para gerar eletricidade. Este procedimento atribui valor superior às energias renováveis frente às energias convencionais e permite comparar melhor as fontes que simplesmente se usássemos o valor calórico da energia usada[4]. A escala do gráfico é a adequada para estudar essas transições dentro do modelo adotado por Marchetti no qual se espera que os trechos, longe do ponto de máximo, sejam representados por retas.

Adotar algum tipo de equivalência entre as diversas fontes é uma necessidade quando se quer comparar sua participação na matriz energética[5] (Feu Alvim, Campos Ferreira, Eidelman, & Goldemberg, 2000). Dentro dessas equivalências, pode-se mostrar a evolução da participação das energias no consumo mundial. A energia hidráulica, por sua importância histórica, é representada em separado das energias denominadas renováveis que surgiram ou, mais propriamente, reviveram a partir das preocupações com o aquecimento global. No gráfico de Marchetti, está incluída a lenha, também renovável, não considerada nas estatísticas da BP que se ocupa apenas das energias comerciais.

As participações das energias primárias no consumo mundial, para dados posteriores a 1965, não seguiram as projeções de Marchetti. De modo geral, as participações variaram menos que o previsto. Como já anunciavam os anos 1970, o carvão e o petróleo não caíram como se esperava nem o gás natural subiu tanto. Para considerações de natureza quantitativa usaremos os dados da BP cuja evolução, em escala linear, é mostrada na Figura 3.

A Figura mostra curvas das energias primárias de 1965 a 2021

Figura 3: Evolução da participação das energias primárias no consumo mundial

As transições entre as energias primárias

Antes da análise quantitativa, vamos fazer uma passada qualitativa comparando os valores projetados e o efetivamente ocorrido, como mostrado na Figura 2. As duas primeiras transições, lenha/carvão e carvão/petróleo, se deram no sentido da substituição de um combustível por outro de maior densidade energética e facilidade de transporte. Com as transições posteriores, nem sempre ocorreu ou ocorre o mesmo.

Transição lenha/carvão mineral

A transição lenha/carvão mineral se deu entre dois combustíveis sólidos, sendo a substituição quase direta, sem grandes modificações nos equipamentos de uso. A BP não mostra o consumo da lenha e só passou a considerar os dados da biomassa quando seus combustíveis passaram a participar do comércio formal de energia. O item “Renováveis” abriu espaço para este tipo de energia nas estatísticas da BP.

É bom chamar a atenção que, os dados relativos ao consumo de lenha não são, em geral, disponíveis para os diversos países. Os próprios dados sobre o carvão mineral, anteriores a 1965 e mostrados na Figura 1, são difíceis de recuperar.

Transição carvão/petróleo

A transição carvão/petróleo é a de um combustível sólido para um líquido de maior densidade energética que reúne, praticamente, todas as vantagens de armazenamento, transporte e uso. Além disto, os derivados de petróleo são utilizáveis diretamente em motores. Isso abriu caminho para a enorme expansão dos veículos automotores. Ou seja, a oferta de petróleo deu lugar a sua utilização substituindo carvão e lenha em muitas aplicações estacionárias, mas deu também a oportunidade da criação do motor de explosão com dimensões adequadas ao uso veicular e isso criou um mercado novo para a energia. Pode-se dizer que os únicos obstáculos à transferência entre carvão e petróleo eram preço e disponibilidade. Estes dois fatores justificaram também a atual opção de China e Índia por carvão.

Transição petróleo/GN

O gás natural é, na maioria das aplicações, vantajoso na substituição de carvão e derivados de petróleo quando usado para gerar calor. Isso é válido, é claro, desde que disponível no local. Ele emite menos quantidade de CO2 por energia fornecida e, de modo geral, menos particulados. No entanto, sua transportabilidade é menor do que a dos derivados líquidos de petróleo que podem ser movimentados e armazenados a pressão e temperatura ambientes[6].

O gás natural também é utilizado como força motriz em veículos, inclusive em algumas cidades do Brasil, mas seu transporte em unidades móveis exige tanques, capazes de suportar pressões de 200 a 250 bar[7]. No Brasil sua utilização é comum em algumas cidades e foi estabelecida dentro de política concebida para estimular seu uso que tem preço competitivo para veículos de grande quilometragem anual. A alternativa para liquefazê-lo exige temperaturas muito baixas e containers criogênicos.

A substituição dos derivados de petróleo no transporte é a mais difícil de ser concretizada. O de outras fontes primárias exigiria a produção de combustível líquido como o álcool e/ou os óleos vegetais. Outra maneira é a utilização de um vetor como o hidrogênio e a própria eletricidade.

Na verdade, mesmo a utilização desses vetores não envolve uma única operação. Para o uso da eletricidade em um veículo automotor é necessário acumulá-la, sob a forma de energia química em uma bateria para, em seguida, reconvertê-la em eletricidade e daí em energia mecânica. Em cada uma dessas mudanças existe uma inevitável perda.

O uso de hidrogênio exige uma forma especial de armazenamento porque é altamente explosivo e para ser utilizado em um motor de combustão interna tem que passar pela baixa eficiência intrínseca deste tipo de motor[8]. Ou seja, a equivalência que favorece a energia renovável, como a da BP, não se justifica nesse caso e não pode ser valorizado pela quantidade de combustível necessário para gerar a eletricidade. O uso de célula de combustível[9] melhora a eficiência, mas também envolve perdas.

O hidrogênio tem problemas de estocagem, transporte e abastecimento ainda não inteiramente resolvidos[10]. O mesmo acontece com a eletricidade, como consequência, os veículos puramente elétricos não possuem ainda autonomia satisfatória, problema agravado por um tempo de reabastecimento muito longo. Consideráveis progressos tecnológicos foram alcançados nos últimos anos, mas persistem dificuldades para que essa contribuição seja estatisticamente significativa[11].

Em 2021, os produtos petrolíferos representaram cerca de 90% do uso total de energia do setor de transporte dos EUA. Os biocombustíveis contribuíram com cerca de 6%. O gás natural representou cerca de 4%, a maioria dos quais foi usada em compressores de gasodutos de gás natural. O uso de eletricidade por sistemas de transporte de massa forneceu menos de 1% do uso total de energia do setor de transporte”

Transição P&G/nuclear

A transição P&G/nuclear também vai no sentido de maior concentração do combustível por unidade de massa, mas não no de maior portabilidade da energia.

Para mostrar a concentração da energia nuclear, costuma-se dizer que uma pastilha de aproximadamente 1 cm3 e massa de 7 g, de óxido de urânio de um reator nuclear, fornece a energia de uma tonelada de carvão ou três barris de petróleo[12] (NEI, s.d.).

A imagem é esclarecedora, mas, em verdade, essa pastilha contendo urânio só produz essa energia em um reator quando associada a cerca de 100 t de outras pastilhas. A forma comercial, atualmente utilizada para o uso da energia nuclear é a geração elétrica em grandes usinas. Ou seja, a utilização da energia nuclear em veículos também passa por um vetor energético, normalmente a eletricidade, que tem que estar armazenada na forma de energia química nas baterias ou, eventualmente, pelo hidrogênio.

O reator nuclear é usualmente grande, precisa de sistemas de vapor para gerar eletricidade e de blindagem pesada para reduzir a radiação, atualmente só grandes navios e submarinos são capazes de transportá-los. Para o espaço, pequenos reatores usando, urânio altamente enriquecido, ou Pu239, podem ser utilizados em naves não tripuladas. Também existem geradores que usam a emissão de partículas carregadas ou o calor gerado no decaimento de radioisótopos, como o PU238, para produzir eletricidade (WNA – World Nuclear Association, 2021).[13].

Ou seja, o equipamento usado atualmente para extrair a energia nuclear para outros usos, é de grande volume e peso; isso faz com que a energia nuclear tenha como vetor de uso praticamente único a eletricidade, embora existam grandes possibilidades do uso do calor direto [14].

Uma observação importante se extrai do gráfico da Figura 2. O uso da energia nuclear subiu, de início, mais rapidamente que o previsto na projeção de Marchetti, mas atingiu um máximo de participação muito abaixo do projetado.

Atribui-se a interrupção do crescimento de sua participação no consumo aos problemas relacionados à segurança de funcionamento dos reatores nucleares revelados pelos acidentes de Three Mile Island (1979), Chernobyl (1986) e Fukushima (2011). Também nos parece necessário considerar as restrições ao uso da energia nuclear para não favorecer sua disseminação que poderia estimular a posse de explosivos nucleares para uso bélico em mais países[15]. Um dos sinais dessa pressão é a dificuldade internacional da aceitação da energia nuclear como alternativa aos combustíveis fósseis que só agora parece estar sendo removida. Após uma queda, sua contribuição na matriz energética mundial parou de cair e se manteve em cerca de 4% na última década.

Fusão nuclear

A participação da fusão nuclear, apesar do esforço tecnológico internacional, ainda não se anuncia como realidade na geração de eletricidade nos curto e médio prazos, embora tenha havido, ultimamente, alguns progressos tecnológicos[16].

Renováveis

O item “renováveis” apenas está presente na representação de Marchetti (Figura 1), na forma de lenha cujo uso estaria praticamente esgotado. Não havia, à época, a perspectiva do ressurgimento do uso de renováveis que estamos assistindo.

Também na Figura 1, os dados da energia hidráulica não foram incluídos apesar de já terem participação próxima da atual (7%). Podemos especular que é porque seu comportamento não se adeque ao modelo de competição adotado ou porque o universo representado seria somente o de combustíveis.

Na mesma escala da Figura 2, foram adicionados os dados de 1965 a 2021, da compilação da BP. Os gráficos mostram o consumo dos combustíveis formalmente comercializados e isso não inclui a lenha. No Brasil, dispomos de dados sobre a lenha, que consta do Balanço Energético Nacional – BEN/EPE/MME do Brasil (Ministério de Minas e Energia, 2022), juntamente com o bagaço da cana de açúcar que não são considerados na compilação da BP. Isto decorre, em parte, da relevância da biomassa em nossa matriz energética.

As energias denominadas renováveis, hoje apresentadas como novidade, representam um retorno a energias tradicionais ligadas aos primórdios da civilização que foram “ressuscitadas” pela tecnologia atualmente disponível.

Lembremos que a energia eólica já é usada, há séculos nos moinhos e foi usada há milênios, na propulsão naval ao longo do Nilo. A energia solar, anteriormente usada na secagem artesanal e industrial, passou a ser usada em painéis solares para a geração de calor e, principalmente, de eletricidade. Outro exemplo de energia renovável é a dos álcoois (etanol e metanol) e óleos vegetais usados em motores a explosão. Esses óleos e os de animais, como a baleia, portanto da biomassa, já foram importantes fontes de energia luminosa no passado. A base de dados da BP já contabiliza os combustíveis líquidos de origem vegetal nos quais o Brasil é pioneiro no uso comercial.

Podemos considerar fracassado o modelo de substituição adotado por Marchetti no caso das energias primárias?

O comportamento em ciclos do uso de energia das diferentes fontes tem uma elegância que fascina a mente humana. É natural, portanto, que procuremos emendar o modelo que é muito útil para compreender e aceitar a inevitável substituição entre as energias ao longo do tempo.

Está implícito no modelo Marchetti uma interação da sociedade com os fenômenos de penetração de um combustível no mercado. Uma das maneiras mais conhecidas dessa interação são os preços e custos de mercadorias ou serviços concorrentes. No caso da energia, o preço mais importante é da energia dominante, o petróleo.

O modelo Marchetti considera que as macrotendências prevalecerão no longo prazo. Já comentamos, sobre a Figura 1, que, usando dados de até1948, as projeções funcionaram bem até 1984. Para os dados até 2021 verificamos que a velocidade das mudanças foi muito menor do que a esperada.

No entanto, as tendências apontadas para o longo prazo estavam corretas, a saber:

  • A lenha e carvão mineral continuaram a decrescer,
  • A participação do petróleo passou por um máximo bem localizado na Figura 1 (em 1973) e continuaria a decrescer,
  • O gás natural teria um uso crescente, possivelmente superando o petróleo,
  • Nuclear era a energia emergente e
  • A fusão só entraria na matriz mundial no longo prazo.

Os que trabalham com o modelo, inclusive o cientista José Israel Vargas que, no artigo já mencionado e em outros (Vargas, Ciência em tempo de crise 1974-2007, 2007), identificou que, em muitos casos, não existe um único processo ao longo do tempo, mas podem existir vários ciclos que se sucedem. Como aprendemos nas pandemias, surgem no mesmo local diferentes ondas ao longo do tempo e/ou ondas não simultâneas em diversas localizações relativamente isoladas. Isso aconteceu na competição energética ao menos no caso do uso de carvão como mostra a Figura 3.

Na análise da evolução por regiões do mundo, percebemos que essa nova “onda” do uso de carvão mineral aconteceu, no início do século atual em virtude das necessidades de energia para o rápido desenvolvimento dos BRICS, como mostrado na Figura 4[17].

Figura sobre a evolução da participação das energias primárias no BRICS

Figura 4: O carvão é a principal fonte primária usada pelos BRICS, existe uma segunda onda de participação do seu consumo desencadeada pelo “boom” econômico de China e Índia.

Em próximo artigo, investigaremos a influência de preços da fonte energética predominante (o petróleo) como determinante no comportamento das transições entre energéticos. Também serão abordados aspectos relativos ao problema da emissão de gases de efeito estufa que está estreitamente ligada ao consumo dos combustíveis e de como as políticas e acordos internacionais teriam influenciado objetivamente nesse consumo.

Proximamente, aprofundaremos a abordagem sobre as diferenças na participação das energias primárias por conjuntos de países ao longo do tempo.

Ajuste preliminar para chegar a projeções

A aspiração do modelo usado por Marchetti é oferecer uma visão do futuro baseada no comportamento passado. A ideia é que estamos lidando com um sistema de grande inércia que seguirá seu rumo uma vez que, supostamente, é capaz de identificar as forças sociais, econômicas e a própria disponibilidade dos recursos naturais.

 Revendo a Figura 2, mostrada na miniatura ao lado, verificamos que os acréscimos de dados a partir de 1965 mostraram, quantitativamente, um comportamento do consumo, bem diverso da suposição simplificadora de Marchetti. O que podemos deduzir do quadro de participação dos diferentes tipos de energia primária é que a crise de abastecimento e preço de petróleo e derivados dos anos 1970 estabeleceu um novo padrão de evolução de curva das participações das fontes energéticas primárias, ao longo do tempo, em uma escala logística. Não obstante essa mudança na “velocidade” das substituições as macrotendências, como já assinalamos, foram mantidas.

O esquema na Figura 5 ilustra esse comportamento. O Carvão (até 1970) seria o exemplo típico do comportamento anterior e o petróleo o do novo. A globalização pode ter contribuído para aumentar a inércia de substituição energética na medida que o consumo intensivo de energia, antes concentrado em poucos países, se generalizou nas últimas décadas.

Tipos de Curvas anterior a 1970 , (simétricas no tempo e, após 1970, decréscimo mais lento.)(
Participação (F) das energias primárias comparadas com as de Marchetti

Figura 5: Novo padrão observado para a evolução da participação de cada energia primária no consumo mundial.

Esta variação na “velocidade” da ocupação do nicho já foi usada anteriormente pelo próprio Marchetti como pode ser acompanhado nos vários exemplos reunidos por Vargas (Vargas 2020) em artigo neste periódico já mencionado anteriormente.

Também a globalização favoreceu a divulgação tecnológica e facilitou a penetração de novas fontes de energia e a implementação delas em alguns “nichos” específicos.

A penetração da energia nuclear, cuja curva parece seguir o novo padrão, encontrou um nicho limitado, na produção de eletricidade em substituição ao carvão mineral, óleo combustível e diesel em países desenvolvidos. Este nicho teria sido esgotado. A rápida expansão do nuclear foi favorecida, em um primeiro momento, pela transferência de tecnologia entre esses países. Já nos países do terceiro mundo, onde a transferência de tecnologia encontra obstáculos, ela não se desenvolveu. A ascensão tecnoindustrial no início deste século da China viabilizou a ampliação do nicho.

O ajuste de retas, na Figura 6, permite extrapolar a participação no consumo para os anos seguintes, com ajuda da escala logística.

Para as energias fósseis (petróleo, carvão e gás natural) e para a energia hidráulica (renovável) existe o tipo de comportamento histórico que dá base para essa extrapolação. Mesmo para a energia “renovável” (eólica e fotovoltaica principalmente) é possível uma extrapolação.

No caso do nuclear, houve uma rápida ascensão e ela teria passado por um máximo de participação no início do milênio (6,7 % em 2001). Sua participação teve uma trajetória de queda até 2012 quando se estabilizou em torno de 4,3% nos últimos dez anos. Especula-se sobre a possibilidade de uma nova onda nuclear puxada pelos BRICS que prestigiaria a única alternativa já testada como capaz de fornecer grandes blocos de energia não fóssil. Face as incertezas, optou-se por extrapolar a participação dessa energia considerando a manutenção da média dos últimos dez anos (2012 a 2021). Ensaios de outros cenários de maior participação da energia nuclear devem ainda ser explorados.

Evolução do consumo de energias em escala linear, mostrando os ajustes

Figura 6: Ajustes aos dados de consumo, em escala logística, visando a extrapolação da participação das energias primárias no consumo mundial.

Quanto às energias reunidas no título renováveis na coletânea da BP, podemos considerar que elas já demonstraram sua viabilidade, embora exigindo, para sua implementação, um ambiente de incentivo e até de subsídios.

A energia hidroelétrica já há muito mostrou sua viabilidade embora exista crescente oposição ambiental e econômica à implantação de usinas com grandes áreas inundadas e até mesmos de pequenas centrais, por diferentes razões. A projeção, feita a partir dos dados passados, sugere que a energia hidroelétrica mantenha a fração de participação observada nas últimas décadas, o que parece ser, no quadro atual, uma hipótese otimista.

Sobre as outras renováveis, a própria figura mostra a inércia de penetração que justifica os 40 anos para passar de 0,1% para 1%. Nos últimos 15 anos, sua participação passou de 1% para 7%. Essa aceleração é coerente com o processo esperado de uma energia em implantação. A extrapolação da penetração futura dessa fonte de energia considerou a “inclinação” para o período de 1990 a 2021. Para uma extrapolação até 2041, o procedimento é justificável. Para um período mais longo, deveríamos considerar, como em outros casos, uma participação máxima que essa energia pode vir a atingir. A experiência da Europa Ocidental, onde foi feito um grande esforço de instalação da geração elétrica com energias renováveis, sugere que esse limite estaria em cerca de 20% de participação. Neste ensaio não foi considerada essa limitação e o valor da participação das “Renováveis” chega a 23% em 2041. Um ensaio que incorpora essa limitação é mostrado no Anexo.

Na Figura 7, estão indicados os critérios de projeção da participação mundial das energias primárias no consumo na escala log (F/(1-F)) onde F é o percentual de participação.

Participação por energia primária no consumo mundial em escala logística

Figura 7: Critérios de projeção da participação das energias primárias no mundo, com destaque para o caso especial das energias nuclear e renovável.

Fundamentalmente, apenas para a energia nuclear não foi possível uma direta aplicação do método.

Na Figura 8 estão representadas, em escala linear, os resultados das projeções de participação indicadas na Figura 7. Além da conversão dos dados da figura anterior (em escala logarítmica) para percentagens, foi aplicado um fator de normalização de maneira que a soma das participações fosse 100%.

Projeções de participação no consumo mundial

Figura 8: Resultado da projeção da participação da energia primária para os próximos vinte anos

Essa simples extrapolação mostra que a energia fóssil permaneceria largamente dominante nas duas próximas décadas o que não seria uma boa notícia para limitar o aumento da temperatura atmosférica. Alternativas de projeção usando o modelo, acoplado a valores máximos de participação de cada energia primária poderia fornecer uma avaliação mais realista para a futura matriz energética mundial.

Um resultado interessante é que a extrapolação prevê, para o último ano, uma convergência das que seriam as quatro principais energias igualadas em cerca de 22% de participação: carvão mineral, petróleo, gás natural e renovável.

Do ponto de vista das emissões de gases de efeito estufa provenientes do uso de energia, é importante examinar como evoluiria a participação de energias não fósseis e seu complemento das fósseis no cenário considerado.

A evolução esperada para as participações fósseis X não fósseis é mostrada na Figuras 9 na escala linear.

Figura com a participação de fósseis e não fósseis no consumo de energia primáriia, com projeção de 20 anos. Figura 9: Resultado da projeção das participações dos fósseis e não fósseis em escala linear.

Além disto, como o total de consumo de energia continuará crescendo, essa mudança de participação não será refletida, obrigatoriamente, em redução das emissões. O efeito positivo de menor participação de fósseis será provavelmente anulado pelo crescimento regular do consumo energético como mostramos mais adiante.

Evolução da matriz energética mundial expressa em exajoules

A Figura 10 mostra o crescimento histórico do consumo mundial de energia total e de petróleo e gás (P&G). Para a surpresa dos planejadores energéticos, o crescimento de consumo de energia mundial, ao longo do tempo, pode ser expresso por uma reta com um índice de correlação R2 = 99%[18]. O valor é muito próximo do valor máximo desse coeficiente que é 1 ou 100%.

No planejamento energético, costumamos fazer projeções com dezenas de variáveis para chegar a um coeficiente de correlação menor e uma expressão válida por um espaço de tempo limitado. Chega a ser decepcionante descobrir que o consumo energético mundial, ao longo de mais de meio século (56 anos), possa ser descrito por uma equação de primeiro grau, ou seja, uma simples reta. A correlação é deveras surpreendente já que é o resultado de quase duas centenas de países com diferentes trajetórias econômicas e diferentes matrizes energéticas em um período no qual houve grandes variações no preço de energia.

A Figura mostra a evolução do consumo de energia e de petróleo e gás que, surpreendentemente são lineares com o tempo

Figura 10: Consumo de energia no mundo e ajuste linear para energia total e petróleo e gás.

No caso da energia dominante, P&G (petróleo e gás) encontramos o índice R2 = 98%. Podemos ver na Figura 10 que a correlação é ainda melhor a partir do ano de 1981, passada a turbulência nos preços e disponibilidade de petróleo dos anos 1970, quando alcança o valor de R2=99%.

A extrapolação da tendência de crescimento, observada ao longo de quase seis décadas, para as duas seguintes, combina com a aproximação adotada aqui para as participações das fontes no consumo, onde a evolução histórica tem forte influência na futura demanda.

Acoplando a tendência inercial de crescimento da energia total consumida no mundo (Figura 10), com a extrapolação de participação das energias (Figura 8) chegamos à Figura 12, em valores agregados.

Figura 11: Expansão do uso de energia no Mundo baseada na evolução das participações dos energéticos e no crescimento linear do consumo aqui projetados

O resultado mostrado na Figura 11 projeta, até 2041, a evolução do consumo mundial de fósseis, não fósseis e destaca ainda o conjunto Petróleo e Gás – P&G. A Figura 12 mostra os valores extrapolados para cada tipo de energia primária correspondente.

Figura 12: Expansão do uso das energias primárias no Mundo baseada em um crescimento linear do consumo (Figura 10) e na evolução da participação das energias primárias (Figura 8).

Esses resultados nos levam a sensações contraditórias: De um lado, a projeção oferece uma perspectiva de estacionamento no uso da energia fóssil, por outro lado, o resultado pode ser decepcionante porque prevê que o consumo de fósseis não será reduzido, apesar de sua menor participação na matriz energética e da perspectiva (otimista) de expansão das energias renováveis.

Ora, sabemos que o nível de emissão aproximadamente constante de gases de efeito estufa, ou seja, a estabilização das emissões não reduz a concentração de CO2 na atmosfera. A razão disso é que a emissão de gases de efeito estufa é, já atualmente, muito superior à capacidade de sua absorção na natureza.

Para deter o aumento da temperatura global, seria necessário reduzir substancialmente as emissões anuais.

A hipótese aqui considerada já contempla uma rápida expansão das energias renováveis e isto supõe uma ampla generalização de seu uso, a exemplo do que ocorreu na Europa Ocidental, onde a participação dos renováveis chegou a um limite que parece difícil de expandir no nível mundial.

Numa visão mais realista, a expansão das energias renováveis (solar e eólica principalmente), no ritmo de crescimento mostrado na Figura 12, não parece condizente com a disposição de países menos ricos para adotar fontes renováveis, sabidamente intensivas em capital. Ou seja, muitos países teriam que alcançar um índice muito superior a 25% de participação de “renováveis” para que a média atingisse esse valor.

Além disto, em cada país onde essas energias alcançam este limite aparece o problema da inevitável descontinuidade, na produção de eletricidade a partir das fontes solar e eólica ao longo de, praticamente cada dia. Isso implica na necessidade de um mecanismo de estocagem da energia elétrica ou na capacidade adicional instalada baseada em outro tipo de geração (normalmente térmica) que também exige investimentos em instalações de armazenamento ou de geração e transmissão que limitam a capacidade instalada deste tipo de energia. Apesar disto, a presente extrapolação não adotou, em nossa abordagem, um limite para a penetração das “renováveis”.  

A energia hidroelétrica e nuclear, também não fósseis e intensivas em capital, poderiam suprir parte das necessidades que possivelmente não possam ser atendidas pelas “renováveis” (eólica + solar). Teriam que ser vencidas limitações que atualmente freiam o crescimento das energias nuclear e hidro. Mesmo o pequeno crescimento projetado para o nuclear significa ainda grandes investimentos em novas usinas e na atualização e modernização das antigas para extensão de vida útil só para manter a atual participação. O aumento previsto na produção hidroelétrica é de menor monta e parece factível mesmo em um quadro de restrições ambientais como as atualmente existentes.

Mesmo assim, o quadro mostra um cenário claramente insuficiente para contenção do efeito estufa. A redução na participação dos combustíveis fósseis é bastante significativa, mas não impede que cerca de 70% do consumo mundial de energia ainda seria de combustível fóssil daqui a duas décadas.

A projeção que resulta das hipóteses aqui expostas não difere muito da previsão da U.S. Energy Information Administration para o consumo de energia até 2050 (EIA U.S. Energy Information Administration, 2020). Essas previsões aparecem acopladas ao histórico dos dados da BP para os anos anteriores na Figura 13.

Para comparar as duas projeções da própria EIA e a nossa (com dados da BP) é preciso que as unidades nas duas bases de dados de sejam coerentes. A possibilidade da utilização de um fator único, para as diferentes energias primárias, mostra coerência entre os dois conjuntos de dados, salvo para  as renováveis. Para essas energias, nesse caso incluindo a hidráulica, é necessário adotar uma equivalência onde os valores da EIA são 22% superiores aos valores adotados pela BP, ou seja, a EIA adota uma equivalência onde a energia renovável é mais valorizada que na da BP.

Resumindo, para que os dados históricos coincidissem no gráfico foi necessário, usar o fator de conversão entre as unidades. No caso das renováveis, foi necessário usar um fator para a conversão multiplicado por 1,22. A evolução histórica e a projeção dos consumos por energia primária da EIA, estão mostradas na Figura 13.

Figura 13: Histórico do uso das energias primárias no Mundo e projeção da Administração Internacional de Energia – EIA dos EUA

Na Figura 13, a designação de cores no gráfico é a do relatório da EIA. Os dados da EIA foram acoplados aos da BP de 1965 a 2000, expressos em exajoule por ano.

Feitas essas correções, é possível comparar nossas projeções, em linha pontilhada, com as da EIA na Figura 14.

Figura 14 Comparação das projeções EIA-US e deste trabalho (pontilhada).

Grosso modo, as previsões são semelhantes já que eles também preveem um consumo parecido nas renováveis, bastante coincidente para gás natural, carvão mineral e nuclear. A maior discordância vem da previsão para petróleo que na nossa é de baixa e a da EIA-US é de alta.

É interessante reforçar as coincidências já que elas confirmam prognósticos que parecem surpreendentes como a relevância do consumo de carvão, em particular, e dos fósseis de modo geral. Também é projetada, pela EIA, uma retomada maior do uso da energia nuclear que superaria em 2041 o consumo energético máximo já verificado.

A má distribuição da energia entre países e pessoas

 A desigualdade na distribuição de energia entre a população dos diferentes países acompanha a desigualdade da distribuição das riquezas.

No conjunto de países analisados, os da OCDE podem ser encarados como o grupo dos países ricos[19]. Uma boa medida do desequilíbrio de consumo energético é a relação do consumo per capita dos países da OCDE relativo ao dos demais países (não OCDE) cuja evolução é mostrada na Figura 15.

Figura 15: Redução da razão o consumo per capta OCDE / Não OCDE ao longo de meio século

Em números redondos, um residente da OCDE consome três vezes a energia de um “não OCDE” (dados de 2020). Em 1965, o habitante da OCDE tinha, em média, um consumo energético de sete vezes o do habitante da “não OCDE”. Para tomar dois grandes países símbolo como exemplo, o consumo per capta de energia dos EUA, em 1973, era 66 vezes o da Índia e; em 2020, ainda é 11 vezes maior que o indiano.

A boa notícia é que essa distribuição melhorou ao longo dos 56 anos, como mostrado na Figura 15. A desigualdade que pode ser medida pelo quociente [consumo per capta da OCDE] / [consumo per capta não OCDE] vem reduzindo ao longo dos anos e temos que encarar isto como um progresso, embora persistam grandes desigualdades internas de acesso à energia entre pessoas de cada país.

É interessante observar que a queda começou com o choque no preço do petróleo, em 1973, e foi interrompida em 1990 quando foi estabelecida a unipolaridade no poder mundial. A partir do início deste século, houve uma queda significativa do diferencial de consumo entre os países ricos (OCDE) e os demais (não OCDE) que foi puxada pela ascensão econômica dos BRICS (principalmente da China).

 

Conclusões Preliminares

Uma extrapolação da tendência da participação das energias primárias no consumo mundial até 2021, para as duas décadas seguintes foi feita, com base na metodologia sugerida por Marchetti e Vargas, adaptada à natureza do mercado energético. A tendência do consumo das fontes primárias, mesmo mantida a forte penetração das renováveis nos últimos vinte anos (até 2021), não parece ser capaz de reduzir, em termos absolutos, o uso das energias fósseis e o aumento do teor de CO2 na atmosfera.

Petróleo e Gás Natural seguirão como energias dominantes nas próximas duas décadas. Os dados históricos mostram uma forte resiliência das energias fósseis, inclusive do carvão mineral que apresenta o maior coeficiente de emissão de CO2 por unidade de energia usada. Um resultado surpreendente e preocupante é que a tendência observada ao longo das últimas cinco décadas mostra que o consumo mundial de carvão mineral poderá, de novo, superar o do petróleo.

Este não é um problema menor. No âmbito dos fósseis, havia um movimento de ascensão do gás natural e queda de carvão e petróleo. Este movimento favorecia a redução da emissão de CO2 no âmbito dos fósseis. A reversão desta tendência agrava o quadro das emissões causadoras do efeito estufa.

O consumo mundial de energia dobrou, desde a conferência Rio 92 que constatou, de forma definitiva, o problema do crescimento de CO2 e outros gases que contribuem para a elevação do efeito estufa na atmosfera terrestre e o consequente aquecimento esperado da atmosfera.

 A boa notícia no que se refere a esse maior consumo de energia veio no sentido de que foi reduzido o desequilíbrio de uso de energia por habitante entre os países e isso significou uma aproximação nas condições de vida entre países ricos e pobres.

Na segunda metade da década de 1970 e na primeira da de 1980, o mundo já passou por um grande esforço de redução do consumo de petróleo e gás natural que se seguiu à redução do uso de carvão mineral por razões de dependência de mão de obra que dificultava a regularidade do abastecimento. Um grande esforço econômico, tecnológico e industrial foi realizado para possibilitar essa mudança. A mudança da matriz energética não foi dramática como a antecipada pelas expectativas àquela época.

A imaginação humana aceita, sem muita crítica, a possibilidade de grandes mudanças  A lição que podemos extrair do passado é que as mudanças nuca são tão rápidas como desejamos e a realidade não se adequa a nossas projeções.

Vamos lembrar apenas um aspecto curioso: no final dos anos setenta, fazia furor nos congressos sobre energia, dirigidos ao terceiro mundo, o uso dos biodigestores de dejetos animais e até humanos. A dúvida no Brasil estava entre a adoção do modelo indiano ou do chinês e fazia sucesso a foto de um menino chinês levando os dejetos da família para o digestor em uma espécie de peneira. Hoje, China e Índia parecem haver alcançado seu caminho de desenvolvimento e têm como energia dominante o carvão mineral que muitos acreditavam estar caminhando para a extinção.

O verdadeiro desafio mundial é propiciar a melhoria da condição de vida dos mais pobres (que implica aumento do uso de energia) sem romper o equilíbrio climático. Isto só pode ser alcançado aumentando a proporção de não fósseis na matriz energética.

O Brasil é um bom exemplo de que isso é possível, muito em função de seus recursos naturais e de medidas tomadas no final da década de 1970 e início da de 1980 quando substituir petróleo era uma questão de sobrevivência.

Usando unidades mais amigáveis que o exajoule, o mundo emite 2,4 toneladas de CO2 por tonelada equivalente de petróleo (toe ou tep) de energia primária utilizada; já o Brasil emite apenas 1,4 (t de CO2/toe). Ou seja, o Brasil emite 58% de CO2 do que o mundo emite por unidade de energia utilizada. Entre os grandes países só a França apresenta um índice melhor (1,3) devido à grande participação da energia nuclear em sua matriz.

Na análise de casos de Brasil e França talvez esteja a chave para encontrar o caminho para a transição energética que o mundo precisa.

 

ANEXO 1

Hipótese alternativa e, possivelmente, mais realista de evolução do consumo mundial de fontes primárias

As energias renováveis vêm se difundido com maior facilidade nos países com maior capacidade de investimento e uma rede de transmissão e distribuição já estruturada. Deve-se supor que, a exemplo de todas as outras energias, exista um nicho específico para as energias renováveis.

No que se segue, procuramos preencher essa lacuna adotando a hipótese que esse nicho existe e esteja limitado a, 25% de participação no total.[20] Quanto ao carvão, a hipótese adotada é de que as oscilações no consumo de carvão são, na verdade, diferentes ciclos e que deveríamos considerar que a participação do carvão seguiria caindo conforme a tendência dos anos mais recentes.

Na Figura A1 mostramos o ajuste feito para os últimos 21 anos e a extrapolação indicada.

Figura A1: Projeção da participação de renováveis (F) no consumo mundial sendo F* = F/Fmax e Fmax = 0,25

A Figura A2 mostra os critérios adotadas para a extrapolação, por 20 anos, para esta projeção alternativa. 

Figura A2: Critérios alternativos de projeção do consumo de fontes primárias adotado nesse exemplo

A projeção do resultado das participações das diferentes fontes primárias, já renormalizadas para que a soma das participações seja igual a 100%, pode ser visto na Figura A3.

Figura A3: Expansão do uso das energias primárias no Mundo baseada em um crescimento linear do consumo e na evolução da participação das energias primárias limitando a participação de renováveis a 25% e supondo a redução do uso do carvão mineral.

As diferenças fundamentais entre o resultado das duas “rodadas” são o consumo de petróleo constante e queda no consumo de carvão mineral. A expansão do uso dos renováveis é menor assim como a do carvão mineral e registra-se um pequeno acréscimo do consumo da energia hidroelétrica e nuclear.

A Figura A4 mostra as extrapolações do uso das energias primárias fósseis e não-fósseis no mundo e a do petróleo e gás natural P&G, incluída nas fósseis.

Figura A4: Projeção do consumo de energias agrupadas em fósseis e não fósseis, mostrando ainda a evolução de petróleo e gás natural.

Figura A5: Melhor aproximação das projeções nesta hipótese com as da EIA-US e a deste cenário.

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Bibliografia:

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Feu Alvim, C., Campos Ferreira, O., Eidelman, F., & Goldemberg, J. (2000, jan). Energia Final e Equivalente – Procedimento Simplificado de Conversão. Economia e Energia E&E, 18. Retrieved from http://ecen.com/eee18/enerequi.htm#energiaeq

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Marchetti, C. (1985, Dec). Cesare Marchetti. Retrieved from cesaremarchetti.org: http://www.cesaremarchetti.org/archive/scan/MARCHETTI-036.pdf

Ministério de Minas e Energia. (2022). Balanço Energético Nacional 2022 – Ano Base 2021. Empresa de Pesquisas Energéticas. Brasília: EPE. Retrieved 2022, from https://www.epe.gov.br/sites-pt/publicacoes-dados-abertos/publicacoes/PublicacoesArquivos/publicacao-675/topico-638/BEN2022.pdf

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Samuel, M. (2013, fev 28/02). The Earliest Sailboats in Egypt and Their Influence on the Development of Trade, Seafaring in the Red Sea, and State Development. Journal of Ancient Egyptian Interconnections, 5, pp. 28-37. doi:10.2458/azu_jaei_v05i1_mark

O Ciclo do Petróleo

Procução de petróleo no Brasil

Editorial do N° 108 E&E:

A descoberta do Pré-Sal despertou a esperança de que estaríamos iniciando, nesta terceira década do século 21, um novo ciclo de riqueza no Brasil, alavancado pelo petróleo.

Nosso sonho era que o ciclo de petróleo não seria como os demais ciclos econômicos de nossa História. Neles, na fase de ascensão, os excedentes gerados enriqueciam uns poucos e, na decadência, ficávamos expostos a um problema duplo: a queda nos excedentes e os problemas sociais da má distribuição de renda gerada no ciclo. Além disso, em quase todos os ciclos a maior parte da riqueza foi acumulada no exterior.

Um bom exemplo histórico é o do ciclo do ouro que durou todo o século dezoito. O uruguaio Eduardo Galeano sintetizou bem esse ciclo na frase: “O ouro brasileiro deixou buracos no Brasil, templos em Portugal e fábricas na Inglaterra.”

O nº 108 da Revista E&E pretende reabrir o debate sobre as perspectivas para o Ciclo de Petróleo no qual supostamente estamos ingressando. O modelo, concebido para a exploração do petróleo do Pré-Sal, foi exposto nesta revista em vários artigos.

Uma compilação do que publicamos está reunida no livro “O Pré-Sal e o desenvolvimento do Brasil: Rompendo as Amarras” disponível no site Brasil 2049. Este modelo influenciou o arcabouço legal construído para o Setor que, nesses anos de obscurantismo, vem sendo criminosamente desmontado.

Com o petróleo do Pré-Sal podia e ainda pode ser diferente. Esse petróleo de águas e solos profundos não é uma commoditie qualquer. Exige a montante e a jusante uma sofisticada tecnologia na qual a Petrobrás é internacionalmente reconhecida como pioneira. Na linguagem da indústria do petróleo, a Petrobras dominou as fases upstream, midstream e downstream ou seja, todas as fases da cadeia do petróleo.

Isso quer dizer que a empresa petrolífera brasileira domina o cerne da tecnologia. Com isso, é capaz de especificar suas necessidades a fornecedores aqui e no exterior e, quando necessário, de formar uma rede industrial local de fornecedores e sócios privados para atender suas necessidades. Para isso, conta também com excelente Centro de Pesquisa associado a redes tecnológicas universitárias.

Como exemplo dessa capacidade de mobilização, está a indústria da Construção Naval que teve uma fase de ouro com as encomendas realizadas a partir da exigência de conteúdo local e está hoje quase inteiramente ociosa.

Na exploração do pré-sal estávamos diante de dois modelos: o da Noruega e o da Holanda. No primeiro país, a exploração do petróleo serviu de base para instalar uma indústria petrolífera pujante, sob a liderança da estatal Statoiol (hoje Equinor). Na expansão da extração a preferência foi dada para empresa nacional. A Equinor hoje exerce atividade mundial, inclusive no Brasil. No segundo, o afluxo de divisas tornou não competitiva a produção local e provocou uma crise social. Terminada a entrada de recursos oriundos do petróleo, a Holanda se viu mais pobre que antes. Imaginávamos que o Brasil seria a Noruega dos trópicos. Enquanto isso, do outro lado do Atlântico, a Nigéria e outros países, beneficiados com excelentes reservas, tomavam o caminho contrário, radicalizando a “doença holandesa”.

De 2015 para cá, demos passos catastróficos para anular esse sonho que parece estar acabando justamente quando o petróleo do pré-sal já é uma realidade e domina a produção nacional. Esse petróleo, que ainda pode ser nosso, é um definitivo caminho para romper as amarras para o desenvolvimento.

O Petróleo e a Eletricidade foram energias, em torno das quais se uniram todas as forças da brasilidade, civil e militar e os capitais públicos e privados.

Através das empresas mistas Petrobras e Eletrobras, o Brasil alcançou o domínio de toda a cadeia produtiva do Petróleo e Gás e estabeleceu a maior rede mundial integrada de energia elétrica. Na verdade, Petrobras e Eletrobras foram pontes que atravessaram, em trajetória surpreendente e quase inexplicável, a rota que começou com Vargas, se consolidou no Regime Militar, chegando até tempos mais democráticos, consagrada na Constituição de 1988.

Nestes tempos difíceis, a brasilidade ainda resiste à obscuridade e aos que querem entregar por uma ninharia o controle do patrimônio construído com nosso capital a não residentes e até estatais de outros países.

Lá se vão, ardilosamente, pedaços da Petrobras. Já a Eletrobras, está por pouco de ser varrida da história nacional. Em ambos os casos, deixando lugar a monopólios ou oligopólios que tendem a ficar sob controle de não residentes.

Só em torno da brasilidade podemos reunir de novo os brasileiros que, nascidos aqui ou não, escolheram construir aqui sua vida, família e residência.

Carlos Feu Alvim

Nota da revisão deste número da E&E em Abril de 2023:

Esta apresentação teve como ponto de partida palestra sobre o ciclo do petróleo apresentada no “Webinário” do Cembra – Centro de Excelência para o Mar Brasileiro em 18 de março de 2021 como preparação para a 3ª Edição do livro Brasil e o Mar no Século XXI. Nossa intenção é apresentar uma versão completa e ampliada de toda a palestra. Outros pontos deverão ser aprofundados em próximos artigos.

Vídeo Cembra Energia nos oceanos: https://www.youtube.com/watch?v=ce43-jG7FbU&t=10997s

Carlos Feu Alvim

Livro disponível na internet:
O Pré-Sal e o desenvolvimento do Brasil:
Rompendo as Amarras

José Fantine e Carlos Feu Alvim
https://brasil2049.com/o-pre-sal-e-o-desenvolvimento-do-brasil/